A Argentina é pouco conhecida em Portugal. Fruto do mediatismo do futebol, Diego Armando Maradona poderá ser a personalidade mais conhecida no nosso país, da mesma forma que Cristiano Ronaldo será o detentor do troféu análogo em terras dos Pampas, dos Andes e da Patagónia. Poucos saberão que o general britânico William Carr Beresford, que seria comandante-chefe do Exército português (nomeado em 1809), depois de liderar uma invasão britânica falhada a Buenos Aires, em 1806, foi o comandante das tropas britânicas na segunda ocupação da Madeira, que começou em dezembro de 1807.
Abandonemos o futebol e a História Militar pela Química e a investigação nesse campo. No caminho inverso do general Beresford, um jovem investigador madeirense, Gonçalo Nuno Martins, do Centro de Química da Madeira (CQM), rumou para a Argentina, continuando um intercâmbio que a ET AL. acompanhou em 2019, no Centro de Investigacíon y Desarollo en Criotecnologia de Alimentos (CIDCA), durante um mês, sob a supervisão da Doutora Andrea Gómez-Zavaglia.
O projeto, liderando pelo Institut National de la Recherche Agronomique de França, junta vários centros de investigação e indústria de Portugal, da Argentina, de Espanha, de França e do Reino Unido, sendo financiado pela União Europeia através do programa Horizonte 2020. Pretende desenvolver novas estratégias de preservação de bactérias produtoras de ácido lático (LAB), aumentando o seu tempo de preservação, para que sejam economicamente sustentáveis e ambientalmente responsáveis. Dessa forma, fornecerão soluções inovadoras para o setor industrial.
Para conhecer o seu trabalho, a vida na Argentina e os desafios da ciência em terras rioplatenses, a ET AL. conversou com o doutorando Gonçalo Nuno Martins.
Porque o regresso à Argentina?
O projeto de investigação PREMIUM, acrónimo para PREservação de MIcroorganismos pela Utilização de Mecanismos de protecção envolvendo oligossacáridos, pretende a obtenção de oligossacáridos (açúcares) com atividade prebiótica e crioprotetora que possam ser usados para auxiliar a protecção e crescimento de bactérias lácticas que são benéficas para a nossa saúde. Há 4 anos, fui ao instituto CIDCA, o Centro de Investigação e Desenvolvimento de Criotenologia de Alimentos, trabalhar na primeira etapa – obtenção de açúcares; agora, fui investigar a segunda parte – a sua ação protetora em estirpes de bactérias selecionadas.
Quais foram os novos desafios?
A natureza do trabalho e o tempo disponível. Apesar de eu ter uma formação muito sólida em bioquímica, a área da microbiologia e a manipulação de bactérias pressupõe métodos de trabalho muito específicos. Como é uma linha de trabalho com a qual não estou muito familiarizado, tive de reaprender tudo. E, claro, tendo só 1 mês para desenvolver todo um plano de trabalho, é necessário um elevado nível de planeamento e de previsão de eventuais problemas que possam surgir e de como os resolver, para que não se perca nem uma oportunidade que o intercâmbio proporcionou.
Como se faz ciência na Argentina?
Com muita qualidade e de forma muito cooperativa e com entusiasmo e com o devido reconhecimento por parte da sociedade! Todos os colegas com quem tive a oportunidade de contactar faziam ciência de elevado nível, com qualidade excelente, com impacto real nas indústrias do país ou na saúde da população. Era uma delícia saber sobre os outros trabalhos, pois todos eram altamente interessantes.
Importância do intercâmbio na ciência?
Além do tradicional alargar de horizontes, que é extremamente importante, principalmente para estudantes e investigadores como eu que viveram neste ponto insular toda a vida, os intercâmbios em ciência são extremamente positivos. Acho que a melhor forma de explicar a sua importância é usando a famosa expressão “uma imagem vale mais do que mil palavras”. Eu posso ter reuniões por videoconferência e discutir por e-mail e por mensagem com os meus colegas todos os dias, mas nada equiparará a experiência in loco. Ver as coisas a acontecer, saber realmente como se faz algo, com que material, “agitando para a esquerda”, “segurando por baixo”, “incubando a amostra na estufa 2 dias”, etc. Durante um intercâmbio somos capazes de absorver uma gigantesca quantidade de informação que nem se compara àquela que aprenderíamos à distância. Os intercâmbios enriquecem mesmo muito os trabalhos e as pessoas que os desenvolvem, por vezes, também, criando amizades para a vida das quais podem resultar novas ideias e projetos.
Achas que a ciência é valorizada em Portugal?
Não. Parece-me que no nosso país a ciência só é valorizada pelos pares, pelos próprios cientistas. A nível da sociedade ainda existe uma certa resistência a abordar temas mais “científicos” e os próprios meios de comunicação não sabem como o fazer. Isto sem esquecer a crise que enfrentam os bolseiros de investigação e a incerteza profissional e pessoal na qual vivem. Durante anos, décadas a transitar de uma bolsa de investigação para outra, mas sem nunca realmente saber se “no ano seguinte ainda terão trabalho”. Se isto não é suficiente para mostrar como a ciência em Portugal é desvalorizada, não sei o que será.
Quais são os pontos em comum entre Portugal e a Argentina?
Os argentinos e os portugueses partilham algumas facetas muito interessantes e curiosas. Aquela com a qual mais me deparei foi o “desenrascanço”. A capacidade de fazer muito com pouco e de, assim, inovar e criar novas formas de fazer o mesmo. A rentabilização de recursos é algo muito importante em ciência, para a diminuição de custos, mas também para a redução do impacte ambiental e tal como os portugueses, os argentinos são altamente eficientes na sua forma de trabalhar. Além disso, posso referir a boa disposição e o calor humano que se sente.
O que te surpreendeu na Argentina?
Uma coisa menos positiva, foi o uso que ainda é feito do plástico descartável, em copos de café ou pratos e talheres para as refeições. Felizmente, já vivemos numa fase em que estranhamos o uso do plástico, o que indica que as nossas políticas de consciencialização ambiental vão num bom caminho. Mas algo que me surpreendeu bastante foi a carreira de investigador já existir desde a década de 1950. Parece-me dizer muito sobre a visão que o povo argentino tem da ciência. A sua agência governamental para a investigação científica, o Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas, foi criado em 1958. Nessa década, em Portugal, foi reestruturado o Instituto para a Alta Cultura, encarregue da cultura e da ciência, autonomizando-se da Junta Nacional de Educação. Apenas em 1967 foi criada a Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica, antecessora da FCT, a Fundação para a Ciência e para a Tecnologia, que, em 2022, assinala 25 anos.
Os argentinos conhecem Portugal? E a Madeira?
Não. Sabem que fica na Europa, que a moeda é o euro e que falamos português. Conhecem algumas cidades nossas, pois ou vieram cá estudar, principalmente durante os doutoramentos, ou de férias. Mas a opinião em relação ao nosso país é consensual e é sempre positiva – que é um país hermoso, com gente muito simpática e hospitaleira. Já da Ilha da Madeira nunca ouviram falar. Pode ser que alguém já a tenha visto num documentário de turismo na televisão ou no fundo rotativo do computador. Mas apesar de conhecerem o Cristiano Ronaldo, nem ele nos pôs no mapa – talvez por serem o país do Messi. Este desconhecimento era expectável, mas por vezes era desapontante, e ninguém me acreditava ao referir que eu era do que era considerado o melhor destino insular do mundo, como dizem os prémios de turismo. Também sempre que dizia ser um ilhéu era um espanto e recebido com muitas perguntas. Mas aí também gera-se uma excelente oportunidade para mostrar tudo o que temos de bom e de especial e que uma ilha consegue ser tão competitiva em diversos aspectos como uma cidade metrópole continental, como Lisboa ou Buenos Aires.
Qual o papel que acreditas que a Ciência tem em Portugal?
No Presente acredito que o papel mais importante da Ciência em Portugal assenta na valorização do património material e imaterial. A arqueologia e a história ainda têm muitas cartas para lançar e mistérios para desvendar sobre o nosso passado tão rico, havendo ainda muito para entender sobre a influência (genética, por exemplo) que as diferentes culturas que viveram no nosso território teve no nosso desenvolvimento como nação e população. As ciências da vida fazem um trabalho importantíssimo na conservação das espécies, na monitorização da qualidade do ar e das águas, na preservação do património geológico, no combate às alterações climáticas, em particular a seca, os incêndios e a deflorestação. Portugal quer ter um porto espacial nos Açores. Teremos e iremos ao Espaço, mas não esqueceremos o que fica em terra… e debaixo dela e nos oceanos. O papel da Ciência em Portugal é e tem de ser de educar para melhorar.
Gonçalo Nuno Martins é aluno do Doutoramento em Química pela Universidade da Madeira, sendo detentor de uma bolsa de Doutoramento pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia. Desenvolve a sua investigação no Centro de Química da Madeira. O seu trabalho tem o tema “imobilização de enzimas para a valorização de subprodutos alimentares” e é orientado pela Professora Doutora Paula Castilho (CQM-UMa) e pela Doutora Andrea Gómez-Zavaglia (CIDCA-CONICET).