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Contributos para o Projecto Bolonha UMa

Antes de tudo, obrigado pela inspiração contagiante do documento Bolonha. Na leitura do mesmo senti-me um pouco como um testemunha de uma nova e melhor Pentecoste que soltou as línguas de seis homens e cinco mulheres. E a minha reacção é: Aleluia.

Tentei ser breve, não consegui em tudo, e mesmo assim náo evitei certamente o risco de “perder” em termos de complexidade e profundidade, até ao ponto de os autores do documento ou leitores mais atentos do mesmo do que eu possam vir a dizer, o que refiro está tudo melhor dito no documento (e eu ter de concordar).

1) O espírito / a inspiração básica e a tendência geral do documento…

parece-me, hoje em dia, irrefutável. Porquê?

O documento faz-se decididamente partidário de uma antropologia, no sentido de ideia / concepção do homem, que coloca o homem no contexto nunca completamente “sondável” e dominável do mundo complexo inteiro que o rodeia (de que depende e é “formador” interveniente). Isto é, o documento tenta ser integracionista e abrangente, sem cair no erro de um totalitarismo ideológico que pensa que domina e tem a totalidade uma vez por todas na mão. E o documento aplica essa antropologia à todas as áreas e níveis do ensino e da aprendizagem. E o documento tira dái consequências para a UMa, sem negar que o que propõe “já se faz”, mas também não dizendo que não há nada a melhorar.

2) Um aspecto exemplar, entre muitos, onde a concretização ou formulação da antropologia (filosofia) corresponde plenamente à mesma, na minha opinião, e vai ao encontro de problemas e dificuldades centrais com que lido nas minhas aulas…

é a proposta da criação / institucionalização do professor “tutor”, no início do processo de formação, pois isto permitirá levar a sério a necessidade de começar pela reflexão e análise do “historial” que traz o aluno sob todos os aspectos, individuais, intelectuais, emocionais e sociais e políticos (com e sem aspas).

Acrescento, sem poder aprofundar agora este aspecto, o seguinte: Não considero isso “a coisa mais fácil do mundo”, e não só em termos de pessoal e da devida preparação do mesmo para tal, mas também, e mais ainda, por outra razão:

Os hábitos de estudo e de relacionamento social (para com colegas, para com “autoridades” etc.), os hábitos de lidar com a própria emocionalidade, os habitos de lidar com o (inevitável) próprio desejo de ter e exercer “poder” e receber e dar “prazer” etc. , factores esses que “jogam” em todo o momento quando pessoas estão juntas seja para qual (outro) efeito for, estes hábitos e factores todos e mais, têm de ser tanto respeitados como postos em causa. Isto é, também deste modo desencadeia-se o que se chama também no documento a aprendizagem durante a vida toda sem fim, aprendizagem esta que é uma tarefa que incumbe antes e com maior exigência de rigor aos professores do que aos alunos.

Só para evitar um malentendido: Conheço e respeito argumentos de cépticos que podiam dizer agora o seguinte: Mas então os professores terão de ser mais psicanalistas e sociologos etc. do que intelectuais e eruditos que ensinam e pesquisam e aprendem nas disciplinas de desporto, das matemáticas, línguas etc. ?

Mas responderia da maneira seguinte: Não há ninguém que não é também “psicanalista” e “sociólogo” etc. E não acho exigir demais de intelectuais que ensinam ao nível mais alto da “pirâmide” educacional que levem isso em consideração de uma maneira mais racional e explícita e abrangente do que outros membros da sociedade que não têm nem tanto tempo nem tanta preparação para isso (para nem falar no dinheiro que lhes possa faltar para participar em acções de formação de todo o género).

2) Um ponto exemplar, entre poucos, onde a concretização ou formulação da antropologia (filosofia) não atinge, na minha opinião, completamente o nível da mesma, noutro sentido … (sem que isso seja uma catástrofe, pois o que referirei aqui, é, na minhá opinião, uma consequência lógica da filosofia inerente ao documento )…

é a passagem dedicada ao ensino de línguas e culturas estrangeiras (dentro do bloco de “Competências transversais”, que começa na pág. 31), onde se reunem, ao meu ver, dois aspectos pacialmente problemáticos que reencontro também noutras partes / frases do documento, e o que vejo nesta parte de problemático são dois pontos:

a) O que se define no documento em termos de aprendizagem de línguas estrangeiras como articulação da língua e da cultura fica bastante no abstracto, e na definição pela negação (onde se diz que o lado instrumental não é suficiente), e num (ao meu ver) simples, para não dizer banal, “aprendizagem formal”.

Daí sugestões que referem tanto argumentos mais por menorizados para fundamentar o que se diz no documento em questão como nomes / autoridades, mas isto não no sentido do jogo (à vezes divertido) do “name-dropping”, mas de forma exemplar, no sentido de referir escolas ou tendências nas disciplinas e áreas de pesquisa actuais que me parecem poder apoiar a antropologia e filosofia do documento.

– Eventualmente, explicitar o além do instrumental e a articulação da língua com o cultural no sentido da inclusão do estético, criativo, emocional, sensual, intelectual, social, pragmático-político, actual e histórico, factores e compontes esses / essas que qualquer “bom” ensino e qualquer “boa” aprendizagem de qualquer língua, seja materna, seja estrangeira, devia levar em consideração que reclama por si ou segue antropologias como a subjacente ao documento, e que não queira fazer do ensino e da aprendizagem de uma língua uma práctica mecânica tipo “papagaio”, mas antes dar lhe

– o estatuto de uma disciplina “ao par” da matemátice ou da lógica ou da geologia, econimia etc., em termos de treino e aplicação de capacidades de análise e sintetização precisa e inequívoca e os limites da mesma,

– um estatuto “ao par” das artes em termos de treino e aplicação das chamadas capacidades criativas

– um estatuto “ao par” da historiografia em termos de treino e aplicação da capacidade de relacionar o antigo com o actual com base na evoluição e mudança constante de todas as linguas,

– um estatuto “ao par” da filosofia em termos de treino da capacidade de pensar sobre si próprio e o mundo de uma maneira mais global do que nos contextos imediatos práticas do dia a dia e de uma maneira que permite a inclusão e tematização explicita do “existencial” intímo,

– um estatuto “ao par” das ciências políticas e das ciências da argumentação no sentido de serem as línguas humanas o instrumento crucial na maioria dos conflictos de interesse e das tentativas de procurar soluções pacíficas para os mesmas, seja nas famílias, nas ciências, nos parlamentos etc., e sendo assim a reflexão sobre os potenciais de “destruição” e de “construção” humanos encontra (ou devia ter) antes de todas as outras disciplinas e áreas o seu lugar nas aulas de línguas, à maneira delas, modestamente, mas decididamente e consequentemente.

– um estatuto “ao par” das teologias que apostam na transmisssão das palavras dos Deuses de todas as religiões em forma escrita, e um estatuto “ao par” dos teólogos de todas as religiões que defendiam o silêncio (consequente ou inconsequente) dos chamados místicos que (isto é os místicos) já sabiam muito antes do famoso L. Wittgenstein que a imperfeição de quase tudo o que o homem cria e usa vale também pelas linguagens. O que quer dizer, entre outras coisas, que é perfeitamente possível e natural em cada primeira semana de introdução a uma nova língua estrangeira ensinar língua e ao mesmo tempo ensinar filosofia contemporânea na sua vertente da crítica das linguagens, partindo do principio seguinte que considero também compatível com a filosofia e antropologia do documento em questão: O chamado e famoso “minimalismo” não trouxe só às artes “novos” impulsos, mas também à pedagogia, e nas duas áeras “minimalismo” não é necessáriamente perda de profundidade, mas antes ganho da mesma por ser veículo ideal para “transportar” a famosa “complexidade” das coisas à qual nenhuma das áreas (da construção) do saber podem fugir.

– Eventualmente, incluir neste sentido, de uma maneira exemplar, para além da retórica em que fala a parte dedicada à Comunicação escrita e oral (pág. 31), as várias vertentes e escolas modernas da semiótica e da pragmática que continuam e aprofundam e desenvolvem etc. explicitamente a retórica ? Como demostra, por exemplo, Umberto Eco. Porquê ?
Eco é um dos eruditos defendem teoricamente uma abordagem que conjuga os tradicionais estudos linguísticos e literários, com base numa antropologia e teoria que tenta não excluir nada dos aspectos complexos do “objecto” de seus estudos.
E demostra as vantagens ( e eu diria e inevitabilidade ) de uma perspectiva destas também na prática do seu discurso científico/académico, isto é, ele não nega ou esconde, mas tematiza a subjectividade (e as limitaçóes), a afectividade, o (bom ou mau) humor e a (auto)ironia, o “político” dentro de cada erudito (e aluno), sem prejuizo pelo rigor da argumentação, mas com o ganho da localização explicita de cada frase que ele ou um colega profere quando tenta ser racional- e “argumentacionalmente” correcto, no contexto mais vasto individual e social, actual e histórica que condiciona cada frase que dizemos.

– Eventualmente referir Comenius, ao lado do cardeal britânico Newman, que se converteu para o catolicismo e era, salvo erro, um defensor, moderado e diferenciado, do dogma da infalibilidade do Papa em Roma (como aprendi, graças ao documento, na internet, porque não relacionava Newman com a pedagogia, obrigado pela lição de historia da pedagogia !). Porquê Comenius ? Também por razões de “equilíbrio / religioso / em termos de confissões, porque Comenius era, salvo erro, algo como um “herético” no meio do catolicismo da sua época, como “protestante”. E porque li, no site www.deutsche-comenius-gesellschaft.de/comenius _1.html (associação alemã Comenius …) que é considerado, por Michelet, de “le Galilée de l´éducation”, e mais:

“In place of scholastic verbalism it turned to demonstrative teaching, conceiving school als play (schola ludus and as a workshop of humanity (officina humanitatis). The same principles gave birth to his philosophy of non-violence, peace, and ecumenicity.”

b) Reduzir a aprendizagem de línguas estrangeiras no secundário ao aspecto “claramente instrumental e dissociado do contexto cultural” (pág. 32) acho dar uma imagem simplificadora da realidade, com base em alguma experiência em escolas aqui no Funchal, sem querer dizer, contudo, que o ensino secundário ou eu nas minhas aulas já façam(os) tudo perfeitamente em relação a essa articulação e ao resto. Para além dessa reserva, acentuar de tal modo globalmente negativo um sector do ensino, significa, ao meu ver, abrir ou criar clivagens desnecessárias entre os níveis de ensino onde se devia fazer antes tudo para que haja um melhor conhecimento mútuo, pois os professores do secundário que não sabem integrar o cultural não sabem porque não aprenderam isso aonde?

Uma tendência para uma atitude parecida, em termos de construir clivagens em vez de pontes, encontro também em dois outros aspectos do documento:

– onde se faz pouco dos “conservadores” (sem reconhecer que somos todos tanto “innovadores” como “conservadores” em termos antropológicos, outro aspecto que merecia ser muito mais aprofundado do que sou capaz e posso fazer aqui ) e

– onde se propaga a “competitividade” como valor quase absoluto, sem mencionar, salvo erro, a solidariedade e a cooperção. como contrapostos, o que me parece tão problemático como apostar só na solidariedade e na cooperaçã e não reconhecer o direito à competitividade, e a inevitabilidade da mesma. Aliás: Seria um tema interessante para uma análise do documento em questão do ponto de vista de uma abordagem linguística que inclui o contexto pragmático (socio-político), explicitar o que o documento transmite também entre as linhas quando apopsta tanto na competitividade,em vez da cooperação, e o mesmo vale para a parte onde o documento se distancia dos “conservadores”. E parece-me evidente que eu possa (pensar) e porventura tenha de ter uma visão um pouco diferente em relação a isso porque o meu “historial” / background etc. pragmático etc. não é em tudo igual ao dos autores do documento em questão em conjunto e muito menos pensando em cada um / uma deles como indivíduo.

3) “Bolonha” antes de Bolonha

O documento dá e reconhece ele próprio também a oportunidade para lembrar uma banalidade do ponto de vista de cada Departamento, isto é que já havia, naturalmente, sob vários aspectos, “Bolonha” antes de Bolonha. No caso do DAEG: As teses de doutoramento de todas as Doutoradas e Mestres (Mestras) do DEAG, da área do Inglês e da áera do Alemão demostram cada uma à sua maneira o seguinte: A articulação entre língua e cultura, a integração do aspecto formal-línguístico, sensual-estético e do aspecto pragmático-político a vários níveis, inclusive a atitude explicitamente “lutadora” no sentido de uma intervenção cívica de intelectuais ´engagées´, a favor da criação de estruturas e instituições pedagógico-sociais mais humanas, faz naturalmente parte da “bagagem” tipo Bolonha que os alunos do DEAG receberam já antes Bolonha.Na parte onde se fala nas licenciaturas de banda larga, falta acrescentar LEIRE. Neste contexto falta acrescentar a licenciatura LEIRE onde o documento fala nas licenciaturas de banda larga.

4) Outra vez: Os “nossos” textos e os contextos pragmáticos dos mesmos

Para excluir um malentendido, repito o que já referi em cima: À minha argumentação, que deu tanta importância ao jogo complexo entre os textos que produzimos e proferimos e os contextos em que vivemose actuamos, faltaria toda a sua eventual coerência se não insistisse mais uma vez no seguinte:

Não sómente por não ser “português”, mas por muitas outras razões (cujas dimensões provavelmente nunca chegarei a ver e poder analisar completamente, se “me fico” só na “conversa comigo próprio”), estou em muitos aspectos numa situação pragmática diferente da dos colegas que elaboraram o documento. Quer dizer, o que condicionou necessáriamente tudo o que eu penso e digo não pode ser nunca o mesmo o que condicionou o documento e os respectivos autores. Mas acho, sem poder aprofundar isso aqui, que isso não implica só (outros) problemas.

Todas estas obserações que fiz e as demais observações que podia fazer, e farei porventura, em relação ao documento em questão, e tudo o que se possa dizer sobre dificuldades, trabalho etc. que a aplicação do documento implicaria. não põem para mim nem um segundo em causa que o comboio que este documento pôs a andar tem que ser apanhado.

Quer dizer: Não fico triste caso alguém prove que quase tudo o que eu escrevi aqui é insignificante ou mesquinho ou por outras razões problemático e inaceitável, desde que não me tire com bons argumentos a ideia que o que tentei dizer acerca do espirito do documento deve ser mantido e aplicado, nesta segunda Harvard que porventura um dia casará, com a benção da sua mãe, e terá filhos.

E se vejo que tenho de ficar triste, é uma reacção “pragmática” inevitável, visto que investi também emoções no que escrevi. E na altura espero saber, até mais ver, também lidar com isso.

Kurt Millner
Professor do Departamento de Estudos Anglísticos e Germanísticos da Universidade da Madeira
Texto originalmente publicado no blog “Projecto Bolonha UMa”.
Proposta de Adaptação da UMa ao Espaço Europeu de Ensino Superior.
Título original: “Contributos”.

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