A Imprensa Académica, numa iniciativa da Direção de Curso em Estudos Regionais e Locais do Departamento de Línguas, Literaturas e Culturas da Faculdade de Artes e Humanidades da UMa, com a Câmara Municipal do Funchal, apresenta a coleção ESTUDOS REGIONAIS E LOCAIS, que traz ao grande público o fruto da investigação realizada na UMa no âmbito no património regional e local.
O primeiro volume da coleção é Bruxas e Diabos: Figuras do mal na literatura madeirense (séculos XX-XXI), de Xavier Miguel, que tem origem na dissertação de mestrado do autor apresentada à Universidade da Madeira (CIERL-UMa). É um estudo inovador realizado sobre seres do sobrenatural presentes na escrita narrativa de obras, tanto populares como eruditas, de autores madeirenses ou que abordam temas ligados ao arquipélago da Madeira.
A obra inclui textos de Helena Rebelo, diretora do mestrado, e dos investigadores Rui Guilherme Silva e Ana Isabel Moniz, respetivamente orientador e arguente da dissertação.
Xavier Miguel, o autor do estudo, é ator e encenador madeirense, fundador e principal responsável artístico pelo Teatro Bolo do Caco.
Quem é Xavier Miguel? Conte-nos um pouco do seu percurso formativo e profissional.
X.M.: Sou um artista de rua, nascido em 1993, na ilha da Madeira, onde comecei a formação nas artes de palco no Conservatório, viajando depois para o Porto, para tirar a licenciatura em Teatro na Escola Superior de Música e Artes do Porto. Após voltar à minha terra, decidi tirar o mestrado em Estudos Regionais e Locais na Universidade da Madeira. Ao longo de tudo isto, trabalhei no Teatro Experimental do Funchal em diversas produções: na RTP-Madeira como apresentador, na Companhia de Teatro Viv’Arte, e fundei o Teatro Bolo do Caco em 2011.
Ao nível da escrita, sou autor de algumas peças de teatro infantojuvenil representadas em várias partes do país, bem como uma mão cheia de peças de rua para aqui e para acolá. No âmbito do Teatro Bolo do Caco, adaptei para o formato de novela radiofónica os romances A Mão de Sangue de João Augusto de Ornelas e Os Mistérios do Funchal de Ciríaco de Brito Nóbrega, e escrevi ainda a série “Estórias do Estupor” produzida pelo Canal NaminhaterraTV.
A obra que agora se publica é resultado de um trabalho académico no âmbito do mestrado em Estudos Regionais e Locais. Que relações tem, ou pode ter, este tema com o teatro?
X.M.: A Literatura desde sempre foi uma grande paixão minha, em paralelo com o teatro, e ao longo do meu percurso estas duas áreas têm-se cruzado algumas vezes. Decidi, primeiramente, seguir um percurso formativo e académico no teatro, e como tenho vindo desde então a trabalhar na área, optei por me inscrever no mestrado em Estudos Regionais e Locais, estimulado por essa paixão da Literatura. Esforcei-me então para conciliar o estudo em paralelo com o meu trabalho nas artes, ganhando assim mais ferramentas que, direta ou indiretamente, me capacitaram mais e melhor para a minha vida e para o meu percurso profissional, sendo que, a meu ver, as áreas não estão diretamente relacionadas, podendo interagir de quando em vez.
O seu estudo procurou marcas identitárias regionais quanto a um tema que tanto tem de mítico como de religioso. O estudo deste tema terá também um objetivo de libertação das crendices e das superstições?
X.M.: A temática do misterioso e da crença sempre me fascinou, e senti ser cativante para muitas pessoas. Aliando esta ideia à minha paixão pela Literatura Popular e Tradicional, decidi usar este estudo para aprofundar esta questão, e perceber o que existe de trabalho feito em torno desta temática, uma vez que as figuras da superstição apresentam conflitos e elementos sobrenaturais que assentam fundamentalmente na projeção e representação do subconsciente individual e coletivo através dos medos, crenças e anseios. Através desta linha de pensamento, tentei encontrar elementos particulares que pudessem contribuir para a definição da identidade madeirense e insular, uma vez que os medos e as crenças dizem muito de um povo e do seu comportamento.
Em relação às bruxas e às feiticeiras, pode-se dizer que o imaginário coletivo teve dificuldades em compreender as mulheres que fugiam a um padrão de submissão e de comportamento e, por isso, caracterizou-as assim?
X.M.: Exatamente. Não apenas o imaginário coletivo as marginalizou, mas principalmente o poder político e religioso, instrumentalizando a crença com objetivos de controlo social, particularmente no tempo do Tribunal do Santo Ofício. Atualmente, ao nível do espiritualismo, bem como em todas as áreas dos estudos sociais, assistimos a uma compreensão cada vez maior da psique humana. Nesse sentido, é incontornável observar a evolução desta figura ao longo dos diferentes contextos, particularmente através dos vários períodos históricos. E ao longo deste trabalho compreendi que “Se a história a atirou para as fogueiras, a literatura abrigou-a, juntamente com a superstição e a crença.” (permitam-me a citação). É nos livros e nos contos que ela e o imaginário coletivo se escondem: na bela forma dos sonhos, e no terrível horror dos pesadelos.
Em relação ao diabo, até há bem poucos anos ainda se infundia nas crianças o medo do inferno, mas o imaginário popular parece também domesticar o diabo. Domina-se melhor o diabo do que as bruxas e feiticeiras?
X.M.: Então, não havia de ser? Uma vez que o diabo é uma das invenções mais caricatas da igreja católica, criado com claros objetivos pedagógicos, ao passo que as bruxas são mulheres com… M grande! Deveremos observar que o diabo é fundamentalmente uma figura literária, que deverá ser distinguido das figuras do esoterismo a ele associados por diversas razões; ao passo que as bruxas e feiticeiras estão enraizadas na própria história da humanidade, devendo ser distinguidas claramente das “fadas madrinhas” e das bruxas dos contos de fadas que nada têm a ver com tantas e tantas Joanas d’Arc.
A apresentação da obra será realizada o dia em que se completam os 36 anos da fundação da Universidade da Madeira, sábado, 13 de setembro, no Colégio dos Jesuítas do Funchal, a partir da 18.30.
Como autor, Xavier Miguel colaborou com a ACADÉMICA DA MADEIRA na obra VIDAS (DES)CONHECIDAS: LUZIA, editada em 2022 pela Cadmus.
Entrevista conduzida por Timóteo Ferreira.
ET AL.