“Este livro não é mera patacoada felina com bafo de atum”: em março foi apresentado o livro vencedor do Prémio Edmundo Bettencourt

“Este livro não é mera patacoada felina com bafo de atum”: em março foi apresentado o livro vencedor do Prémio Edmundo Bettencourt

O Prémio Edmundo Bettencourt de 2023 foi atribuído a Nicole Collet pelo seu Apollinaire, um gato filósofo, que integrará a próxima Feira do Livro do Funchal.

O Prémio Literário Edmundo Bettencourt é um galardão da Câmara Municipal do Funchal que homenageia este poeta funchalense e visa “fomentar o gosto pela criação de textos literários” e “incentivar a produção de originais da língua portuguesa”. Este ano, o júri escolheu Nicole Collet pela obra As desventurosas aventuras de Apollinaire, o gato filósofo, cuja apresentação foi realizada na 50.ª Feira do Livro do Funchal, em 2024.

Qual foi a inspiração do gato filósofo Apollinaire e como se desenrolou o processo criativo desta narrativa?

Quando vi os vídeos da série “Henri, le chat noir” no YouTube. pensei que adoraria escrever um livro assim e senti literalmente a vontade borbulhar dentro de mim. A série é engraçadíssima, filmada em preto e branco ao estilo da Nouvelle Vague e protagonizada por um gato filosófico, blasé e ácido que comenta sobre sua vida e os humanos ao redor.

Digitei uma página para ver no que dava e não consegui mais parar, escrevi até com caneta à luz de velas durante a passagem de um furacão que atingiu ventos de 300 quilômetros por hora. O processo envolveu três meses para redigir o esboço, duas leituras críticas, quatro leituras beta e seis anos engavetando e desengavetando o manuscrito, que amadureceu junto comigo.

Fico grata por esse tempo. Permitiu a inclusão de novos elementos e experiências que enriqueceram a narrativa e, de outro modo, jamais teriam se incorporado a ela. Numa desengavetada, por exemplo, apareceu um elefante. Noutra, o suposto editor das memórias do gato tornou-se um personagem também, fazendo contrapontos cômicos em notas de rodapé.

Hoje falta humor no mundo, por diversas razões, o que se reflete na produção cultural – livros, filmes, séries de TV, jogos, publicidade, moda. Creio que isso acaba alimentando um círculo vicioso. As obras tornam-se cada vez mais sombrias ou violentas enquanto a comédia vai saindo de cena. Humor, quando há, tende a ser negro ou cáustico.

Espero que a história de Apollinaire desperte o riso e alguma reflexão, inspirando o leitor. Ela traz citações de grandes pensadores e algo da minha própria vivência, além de pitadas de zen budismo, espiritualidade, neurociência, mecânica quântica e a noção de como cocriamos nossa realidade para o bem ou para o mal. Então, se depender de Apollinaire, que seja para o bem.

Para os leitores, poderia desvendar um pouco da sua obra?

Reproduzo aqui a sinopse que escrevi para a contracapa do livro, que dá uma ideia da história e da voz do protagonista:

“Não se engane, leitor. Este livro não é mera patacoada felina com bafo de atum. Trata-se de uma obra séria com reflexões profundas sobre a Verdade, o sentido da vida, as complexidades do amor e a forma correta de afagar um gato.

Estas memórias incluem no título a palavra aventuras por exigência do editor. Eu prefiro desventuras, mas ele alega que não tem apelo comercial. Para evitar a discórdia e um corte de ração, deixo então que o leitor decida como prefere chamar meu histórico de perrengues. A lista é longa…” – Apollinaire, felino e filósofo

Hipocondríaco, melodramático, mal-humorado e arguto observador da natureza humana, Apollinaire se define como o maior (talvez único) filósofo felino do mundo. Aqui ele relata os perrengues e reviravoltas que o levam das ruas de Paris ao Havaí. Seus aliados nessa jornada incluem uma editora atrapalhada às voltas com sapos fantasiados de príncipe, plantas falantes, animais telepatas e um velho fantasma que mora no armário. E, é claro, uma coleção completa de livros de filosofia.

Que importância teve para si a conquista do Prémio Literário da Cidade do Funchal, Edmundo Bettencourt.

Submeti meu manuscrito porque achei o concurso interessante, mesmo duvidando que tivesse alguma chance por se tratar de uma ficção de humor e não um trabalho de cunho histórico, social, regional ou psicológico, tipo de obra que por razões óbvias (sem trocadilho) costuma ser levado mais a sério. Arrisquei. A rejeição não é fato incomum e a gente se acostuma com ela – na verdade, é uma boa mestra que ensina resiliência.

Quando recebi a mensagem sobre o prêmio, logo pensei que se tratava de uma rejeição bem-educada, agradecendo-me a participação e lamentando que minha obra não tivesse sido selecionada, mas quem sabe numa próxima vez. Ao ler a mensagem, vieram-me lágrimas aos olhos e precisei relê-la duas ou três vezes para assegurar-me de que não havia me enganado.

Coloquei todos que trabalharam para concretizar o prêmio e a edição impressa em meus agradecimentos. Sinto imensa gratidão por me darem a oportunidade de trazer este livro ao mundo em um berço tão belo quanto a Madeira. E uma alegria que não cabe em palavras ao saber que as memórias de meu gato ranzinza tocaram o coração de alguém.

Como autora lusófona, que perspectiva tem em relação à uniformização da grafia do Português face às singularidades escritas do Brasil e de Portugal?

Ah, aqui falo o português que se entende nos dois países: achei a reforma ortográfica desnecessária. A meu ver, foi um despropósito e um desperdício de dinheiro para reimprimir incontáveis livros. Sempre nos entendemos em português não unificado, por que isso agora? E, como não poderia deixar de ser, as expressões regionais persistem. Com ou sem reforma ortográfica, bicha é uma coisa em Portugal e outra no Brasil.

Trabalhei a vida inteira com texto, inclusive revisão, então imagine o meu apego às palavras com suas grafias e acentos peculiares. Para mim, são amigas íntimas, têm voz e personalidade. Inclusive, procuro variar o vocabulário ao máximo para dar-lhes serventia. Palavras que não são usadas ficam encarquilhadas, caem no esquecimento até se tornarem esquisitas e parecerem forçadas. Aí é que ninguém mais quer usá-las mesmo. Fico triste ao ver palavras perfeitamente funcionais reduzidas a fósseis abandonados nos dicionários. Riqueza de vocabulário amplia o poder de abstração e, por conseguinte, os horizontes da pessoa.

Mas, voltando à reforma ortográfica, não me agradou muito o troca-troca do hífen. Microondas virou micro-ondas, vá lá. Aquele auto-retrato tão gracioso, porém, tornou-se um grosseiro autorretrato que soa como uma porretada ou algum experimento biológico malsucedido. E o verbo pára, com o acento tão assertivo quanto seu significado, agora é um para desmilinguido, indistinguível de uma anódina preposição.

A esta altura já me acostumei com as mudanças, e felizmente não mexeram no porta-retrato. Contacto e contato também seguem em paz, assim como outras particularidades de grafia. Admito, com certa culpa, que embora despedir-me do trema tenha doído, achei que sem ele as consequências das coisas ficaram mais fáceis – ao menos na hora de digitar.

Não quero me estender demais, mas gostaria de mencionar o intercâmbio riquíssimo que a edição de meu livro em Portugal me proporcionou, dando-me oportunidade de pesquisar regras e usos em ambos os idiomas. Os brasileiros de minha geração tiveram uma alfabetização mais próxima da língua mãe. De lá para cá, com o avanço da internet, nosso português falado (com prosódia bem diversa da lusa) transferiu-se mais rápido para a escrita, que sofreu certas mutações. Se, por um lado, para nós o português lusitano é familiar, por outro, a criatura mutante que se tornou o português brasileiro pode causar espanto aos portugueses (e decerto causou ao pessoal da editora Cadmus).

No Brasil, tendemos a levantar do chão, sentar na cadeira e deitar no sofá; vamos até o mercado e atrasamos para chegar em casa; ouvimos o futebol no radinho de pilha, preferimos nos pentear a pentear-nos e indagamos filosoficamente: para que tudo isso? Viajamos à França e, se lá alguém é morto a paulada, vamos lamentá-lo em vez de o lamentar… Enfim, são coisas da língua.

Entrevista conduzida por Luís Timóteo Ferreira.
ET AL.
Com fotografia de Michael Sum.

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