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A visão do Outro

Há séculos que os homens viajam pelo mundo, entrando em contacto com outras sociedades e povos, relatando depois as suas experiências. Ao longo do século XIX, inclusivamente, muitos desses relatos foram acompanhados por apontamentos em desenho e aguarela, alguns depois divulgados em litografia. A partir da segunda metade do século e com a divulgação da fotografia, a situação mudou bastante, perdendo grande parte da sua carga afetiva.

A análise das opiniões dos estrangeiros sobre os madeirenses e o seu quotidiano tem sido trabalhada por vários investigadores, como o Dr. António Marques da Silva, para os viajantes de língua inglesa e Eberhard Axel Wilhelm, para os de língua alemã. A opinião destes viajantes não é muito diferente, elogiando quase sempre a classe mais abastada madeirense, mas criticando quase ferozmente as classes mais humildes, que a depois célebre escritora Maria Ridell, ainda nos finais do século XVIII, não se coíbe de apelidar de “indolentes, sujas e propensas ao roubo”. Alguns anos depois, Alfred Lyall, in Rambles in Madeira (1827), só não apoia a última opinião, quando refere a propósito da dificuldade em recrutar criados no Funchal, que são uma “raça desleixada em que só se pode confiar quanto à honestidade”.

Nos meados do século a inteligente e atenta inglesa Isabella de França, volta a tecer as piores críticas aos mais desfavorecidos, chegando a escrever “que não serão estúpidos, mas fingem sê-lo, o que aliás acontece com todos os camponeses”. Acrescenta mesmo, que “além da sua desonestidade, os camponeses são muito cobardes” e “são espertíssimos, fingindo sempre extrema ignorância e estupidez, e ao mesmo tempo, como quase todos os velhacos, muito desconfiados, crendo sempre os outros tão maus como eles”.

As piores críticas, entretanto, especialmente dos viajantes britânicos, vão para o clero, não conseguindo entender como uma população tão diminuta conseguia suportar economicamente um tão elevado número de religiosos regulares e irregulares. As litografias divulgadas pelas oficinas londrinas são, inclusivamente, de enorme e mordaz crítica, sendo mesmo anedóticas. Resta, no entanto, saber quem foram os autores de alguns dos desenhos que serviram de base a essas litografias, pois, muito provavelmente, algumas partiram de desenhos enviados da Madeira e por autores daqui naturais.

Estas e outras opiniões, como as expressas por Isabella de França, quase ofendida com o regresso dos ex-emigrantes endinheirados de Demerara, que levantavam residências que ombreavam com as dos comerciantes ingleses, parece apontar mais para quase “luta de classes” que para outra coisa.

Rui Carita
Professor da UMa

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