Muito poucos ficcionaram até hoje que a terceira guerra mundial seria travada contra a natureza, sem ter como protagonistas principais em conflito, os poderes bélicos clássicos. A ordem mundial relativiza-se e dissolve-se de modo surpreendente perante a pandemia que assola o mundo neste momento.
A Covid-19 está a ter custos humanos e económicos gigantescos, uma catástrofe que é uma ameaça de saúde pública e uma emergência económica no presente e no futuro. Sobre o presente e o futuro fala-se 24 horas por dia, mas… e sobre o passado? Discutir os primeiros momentos de progressão do vírus é uma forma de distração política usada por líderes de países onde o surto continua a progredir? Ou é uma forma de xenofobia em relação à China? O regime chinês fez todos os esforços para avisar o mundo do que aí vinha? Foi negligente? Incompetente? Agiu de forma intencional? E se não fez tudo o que podia, é possível prová-lo?
Um estudo da Universidade de Southampton, no Reino Unido, calculou que ter atuado com medidas restritivas (desde logo nas viagens aéreas) uma semana antes, duas semanas antes ou três semanas antes teria reduzido o contágio internacional em 66%, 86% e 95%, respectivamente. O rigor é aliado da eficácia e todas as questões retóricas terão que um dia ser esclarecidas de forma transparente e fundamentada.
Enquanto isso, o encerramento compulsivo de esplanadas, cinemas, cafés, restaurantes e todos os locais públicos não essenciais foi uma inevitabilidade. Os dias que vivemos de isolamento e confinamento aumentam dia para dia, a incerteza do que nos espera. E que ninguém tenha ilusões. A ameaça é bem real. Quando a crise sanitária se transformar numa crise económica e depois numa crise social, será que vai ficar tudo bem?
As catástrofes são acontecimentos muito ambivalentes. São uma excelente oportunidade para repensar e mudar alguma coisa, sobretudo se as conseguimos antecipar sem termos de passar por elas. Antecipar o inesperado torna-o menos inesperado e, conhecendo-o, permite responder-lhe melhor. Porém tornam-se também numa oportunidade para agravar desigualdades.
Ora, é nesta terrível ambivalência que estamos. Ao lado do medo da próxima catástrofe, inesperada, da morte por um vírus que não conhecíamos, cresce o medo da pós-catástrofe ou, dizendo melhor, da catástrofe do regresso ao esperado que conhecemos das vidas que levamos, mas mais endurecido.
A necessidade de fazer frente à recessão, a défices multiplicados, a recuos de uma década de juros de dívidas, dados todos por certos, mistura-se agora com restrições movidas pelo imperativo da saúde, a justificar uma austeridade soberana e impiedosa, sem apelo nem agravo.
E, ao mesmo tempo, a compressão de liberdades individuais em contexto de emergência mistura-se com critérios etários, restrições de circulação assimétricas, dirigidas apenas aos mais velhos, de que já se fala e se discute a constitucionalidade. Uma vez adquirido o precedente, é preciso perceber que outros critérios, de género, modo de vida, que uma qualquer racionalidade de meios determine, farão caminho. Este é um quadro distópico, não imaginado, mas apontado como certo.
Lê-se até à exaustão que não haverá regresso ao normal e que começará um “novo normal”. Mas, fundamentalmente, o que há de novidade é “apenas” a intensificação do que não é novo. A catástrofe ao serviço da aceleração, da eficiência da extração. A novidade significativa que vamos vivendo angustiadamente não apresenta o novo, o diferente, mas o mesmo reiterado e empedernido como nunca vimos.
A economia dita que terminem as medidas que a abrandaram, que aceitemos a condição de existirmos doravante ainda mais como massa colectiva biológica para assim tornar possível continuá-la, cada indivíduo com uma autonomia que não será maior do que a de uma célula. O ultimato que obtém a sujeição voluntária das sociedades, enquanto subsistir vontade democrática (e mesmo individual) é brutal: todas as alternativas serão piores. Mas até que ponto pode esta alternativa ser aceitável?
Pode a economia avançada do conhecimento, do terceiro milénio, da sociedade da informação, pós-industrial, etc., valer, afinal, apenas a escolha entre a vida e a servidão voluntária de um país? Se nos conformamos a uma competição de catástrofes, resignamo-nos à degradação da dignidade colectiva, admitimos que a lógica da competição até da catástrofe faça oportunidade.
Diante do desastre do capitalismo do desastre, as melhores esperanças são que o desastre natural de uma pandemia viral (mesmo se com razões humanas por detrás) conseguisse estar para o que ameaça seguir-se, socialmente devastador, como Chernobyl foi, no passado, para um regime político.
Ricardo Fonseca
Aluno da UMa
Post scriptum:
Ainda a este propósito, vale a pena ver um filme recente extraordinário: Milagre da cela 7. Está lá tudo.
A luta entre a realidade e as aparências. A relação entre os normais e os diferentes. A desproteção dos mais fracos perante o Estado dos fortes. Mas, acima de tudo, o factor humano, aquilo que nos torna únicos e irrepetíveis, capazes da transcendência independentemente dos padrões que nos queiram impor.
Será sempre um desafio, de encontrar o equilíbrio do fim ou o fim do equilíbrio que minimizem uma recessão futura.