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Escrever profissão do coração

Aprender a gostar de ler não foi difícil. Na verdade, devo dizer que ler foi uma necessidade. Todos os fins-de-semana, após o almoço, eu e o meu irmão éramos obrigados a dormir. E eu, metida dentro do quarto e sem vontade de cumprir a ordem dos meus pais, ia sempre à estante buscar um livro. Os anos foram passando e a necessidade transformou-se em prazer. Da leitura à escrita foi um pequeno passo: eu adorava fingir-me outras pessoas e descobri que na escrita poderia ser quem quisesse. Desde muito nova, portanto, soube que a minha profissão teria que estar ligada às letras e, quando passou a fase do “quando for grande quero ser professora”, decidi que o Direito seria a escolha certa. No secundário, deixei as composições de lado e passei a escrever só para mim, nos meus diários. Dediquei-me aos estudos e aos 17 anos, já com a ideia em seguir Magistratura, entrei em Coimbra. A mudança, a falta, a saudade, o choque entre o facilitismo do 12.º ano e a exigência da faculdade despertaram em mim a urgência em escrever. Abri um blog e despejei a minha imaginação nele. Pouco a pouco, os leitores foram chegando, criticando, incentivando e eu, cada vez mais desiludida com o Direito, fui aprimorando a minha escrita e redescobrindo um amor que estava escondidinho há algum tempo.

Aos 19 anos, em plena época de exames do terceiro ano, acordei com uma ideia a pulsar-me na cabeça. Confesso que, na época, pensei que não estaria à altura do desafio. Mesmo assim, nasceu o Distúrbio, um livro que aborda a pedofilia. Muita gente pergunta-me o porquê do tema. A pedofilia foi um assunto que, não obstante causar um certo desconforto, sempre me despertou o interesse. Eu, revolucionária, optimista e ingénua, julguei que poderia salvar todas as crianças ao longo da minha futura carreira profissional. Em Direito aprendi que pouco se fala sobre o abuso sexual de menores, que somos máquinas do sistema e, como máquinas que somos, trabalhamos com vista a um fim, sem sentimentos, sem remorsos, sem sonhos de paz e amor no mundo. Na minha escrita eu poderia falar. Abordei a pedofilia – e não só – da forma mais crua que consegui. Coloquei na Rossana, a personagem principal, toda a minha frustração e angústia.

Durante cinco meses, aproveitava todo o tempo livre para escrever, para voltar atrás, para pesquisar e assimilar, para apagar e reescrever. Foi um processo de crescimento pessoal que me fez ver que escrever não é só sentar e deixar as palavras fluírem nos dedos: é preciso ter a humildade para ver o que está mal e mudar; de ler o que está bom e não se deixar ficar por aí; é preciso ler muito, aprender novas formas de escrita, abrir caminhos na nossa mente; ter a consciência de que não somos Deus apesar de acharmos que a ideia é boa e que temos um bocadinho de jeito. Quando o terminei, imprimi-o e entreguei-o à minha mãe que o leu numa noite. E, ao contrário do que possam pensar, a reacção dela não foi das melhores. Ela ficou chocada e várias vezes repetiu o facto de não conseguir encaixar um livro tão forte – palavras dela – na minha personalidade. Essa foi a melhor crítica que me poderiam fazer. Escrever é estar além do que somos, é fingir e imaginar, é deixarmos a nossa pessoa num outro estádio e partir para a história que criámos. Depois da minha mãe, muitas outras pessoas leram. Até que um dia pensei em tentar publicá-lo. Enviei-o para várias editoras que, ou recusaram, ou ofereceram-me um contrato editorial demasiado pesado para os meus bolsos de estudante.

Uma noite, na internet, conheci a Estronho, um editora brasileira. Fiquei, desde logo, encantada, tanto pela criatividade dos temas, quanto pela qualidade das capas mas, principalmente, pelas oportunidades que dão aos novos autores, e tratei de tentar a minha sorte nas antologias que são organizadas por eles. Ao fim de pouco tempo, fui seleccionada para algumas e, um dia, o editor M.D. Amado perguntou se eu não teria nenhuma obra a solo que quisesse mandar para avaliação.

Enviei o Distúrbio e esperei. O livro foi aprovado e lançado em Dezembro de 2011, em São Paulo. Foi prefaciado pelo editor e apresenta uma arte gráfica belíssima.

Escrevo muito, todos os dias, sempre que posso. E, embora não me pague as contas, escrever é, sem qualquer dúvida, a minha profissão do coração.

Pois, neste momento, faço parte de treze antologias de contos, algumas lançadas em 2011 (Cursed City; PsyVamp; Lugares Distantes e A Polémica Vida do Amor) e outras a sair este ano (Série VII Demónios – Gula, Inveja, Soberba, Preguiça, Avareza e Ira; Eu acredito; E se Al Capone fosse mulher? e Le Monde Bizarre). Para além disso, escrevo para quatro revistas – Magazon, Benfazeja, Infektion Magazine e JA.

O Distúrbio, para quem esteja interessado, pode ser adquirido na livraria on-line da editora http://estronho.com.br/loja ou directamente comigo, através do e-mail vpsf88@hotmail.com.

Valentina Silva Ferreira

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