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Estórias do arco da velha

Pai. Filho. Espírito Santo. Ámen. O pão foi dividido em quatro e entregue à mãe, ao pai, ao filho e à filha. Mastigou-se em silêncio, sombreado pelo zunido de moscas gordas e sebosas que se colavam às peles húmidas e carecidas de água. Os olhinhos pequenos das crianças saltavam de prato em prato, numa espécie de corrida contra o tempo: quem acabasse primeiro, poderia ficar com o pescoço que sobrara no prato de barro.

O menino foi o primeiro: chupou o caldo com os beiços em forma de beijinho e jogou a colher para dentro da taça; a mão foi rápida – voou em direcção ao pescoço pouco carnudo e levou-o à boca. Uns dedos gastos pela terra sacudiram a orelha do pequeno que, dolorido, largou o osso e chorou.

– Quem te disse que isso é para ti?

A mãe encostou as mãozinhas ao peito e fungou baixinho. A menina baixou os olhos e continuou a comer. O pai colocou o maldito pescoço na borda do prato e sorveu o resto da sopa. Naquela casa comia-se pouco: mas trabalhava-se muito. E isso é contraditório. Muitas vezes, o único som que reinava na sala velha, aquecida por uma lareira antiga, eram os resmungos de estômagos esfomeados e fracos, seguidos por suspiros de quem tenta confortar o buraco vazio com um ar; um ar carregado de cheiros e vivências pesadas. O pai limpou o bigode, demoradamente, como que fazendo cerimónia. Os outros seis olhos concentraram-se nos movimentos do homem que pegou no pescoço e o encarou com gula.

– Nesta casa, divide-se tudo. Não apenas no Natal mas todo o ano.

E o pescoço foi partido em quatro porque ali podia faltar o luxo mas abundava a união. Os meninos chuparam com regalo os seus bocadinhos; a mãe sorriu e o pai viu nos olhos das suas crianças que, a cada dia, os ensinava a serem Homem e Mulher.

Valentina Silva Ferreira
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

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