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Estaremos perante uma inconstitucionalidade?

Os limites à indemnização em caso de extravio internacional de objetos postais. Estaremos perante uma inconstitucionalidade?

O extravio internacional de objetos postais é uma matéria que tem vindo a ser recorrente nas reclamações recebidas na Direção de Serviços do Consumidor. Neste âmbito, tem-se verificado que os Consumidores, quando se deparam com o extravio de uma encomenda, apresentam reclamação com vista a serem indemnizados, integralmente, pelos danos causados pelo extravio, procurando, assim, receber, pelo menos, o montante correspondente ao valor do objeto postal extraviado. No entanto, apesar de ser esta a pretensão da maioria dos Consumidores, nem sempre é possível alcançar, face aos limites indemnizatórios fixados na legislação em vigor. A título meramente informativo, acresce referir que, no domínio do serviço postal internacional, a modalidade de envio mais comummente utilizada por parte dos Consumidores é a de “correio registado” sem serviço adicional.

E por que razão isto acontece?

Porque as normas que preveem o direito à indemnização em caso de extravio internacional de objetos postais, limitam o montante indemnizatório, através de valores tabelados.

Estes limites, na maior parte das vezes, traduzem- se na atribuição ao Consumidor de um montante manifestamente inferior ao dano, levando, assim, à frustração das suas expetativas. Isto é, apesar de se confirmar a existência de um incumprimento contratual, uma vez que o objeto postal não chegou ao destino final, os agentes económicos nunca serão responsabilizados pelos danos integralmente causados, respondendo apenas dentro dos limites aplicáveis, exceto se o Consumidor tiver optado pelo serviço “Declaração de Valor” (modalidade esta que lhe permite, efetivamente, receber uma indemnização correspondente ao valor real da perda) ou, se o valor do dano for inferior ao montante de indemnização já fixado.

Ademais, constata-se que a maioria dos Consumidores não têm conhecimento desta realidade, nem das consequências da ocorrência de um extravio, caso não procedam à referida “Declaração de Valor”.

Cumpre, agora, aludir a algumas normas que norteiam a nossa abordagem, e proceder ao devido enquadramento jurídico da matéria, determinando de que forma estas regulam o “direito a indemnização”, em situações de extravio internacional de objetos postais.

Vigora, na ordem jurídica interna, a Convenção Postal Universal (CPU), ratificada pela Resolução da Assembleia da República n.º 36- A/2004, de 11 de maio, cujos países signatários são membros da União Postal Universal, aos quais se aplicam os instrumentos normativos internacionais daí resultantes.

Por exemplo, nos termos do art.º 34.º, n.º 2.1. da CPU, “Em caso de perda, de espoliação total ou de avaria total de um objeto registado, o remetente tem direito a uma indemnização fixada pelo Regulamento das Correspondências”. Por sua vez, o art.º RL 155, n.º 4, do referido Regulamento das Correspondências determina que “o montante da indemnização prevista no art.º 34.º, n.º 2.1. da Convenção em caso de perda, espoliação total ou avaria total de um objeto registado eleva-se a 30 DES” (Direito Especial de Saque).

Contudo, importa salientar, que a este valor acrescem “as taxas e os direitos liquidados pelo remetente para depósito do objeto (exceto as taxas de registo), para determinar o montante total da indemnização devida”.

Ou seja, a indemnização legalmente prevista nestes casos, consiste, por um lado, nos 30 DES (à taxa em vigor no momento da ocorrência do facto) e, por outro lado, no valor das taxas e direitos liquidados pelo remetente para o depósito do objeto, exceto a taxa de registo.

O que significa que, sendo 1 DES, aproximadamente, 1,20 €, os referidos 30 DES dariam origem a uma indemnização máxima de 36,00 €, o que, como já referimos, traduzir-se- ia, muitas vezes, num montante indemnizatório manifestamente inferior ao prejuízo causado pelo extravio. Assim, no sentido de se evitar este tipo de resultados desrazoáveis e insatisfatórios, idealmente, os Consumidores deveriam contratar o serviço de valor declarado, e serem devidamente informados dessa possibilidade.

Estaremos perante uma inconstitucionalidade?

Num plano jurídico-constitucional, face às normas que estabelecem limites à indemnização, em caso de extravio (previstas nos instrumentos normativos internacionais que regulam os serviços postais internacionais), suscita-se a questão de uma possível inconstitucionalidade, e, para tal, convoca-se o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 650/2004 – Processo n.º 448/99, em particular, no que respeita ao voto de vencido, com o intuito de levarmos a cabo uma outra interpretação do Direito, em matéria de regulação do “direito à indemnização”, essencialmente, quando o dano resultante de determinada situação é manifestamente superior às indemnizações fixadas e limitativas.

Como vimos, o extravio confirmado, normalmente, origina um dano no Consumidor, que, à partida, é superior à indemnização que poderá ser determinada pelos Prestadores dos Serviços Postais, contudo, este Acórdão, nos vincula, de certa forma, à não possibilidade de limitar este “direito à indemnização”, permitindo concluir que os Consumidores poderão, eventualmente, receber uma indemnização equiparada ao dano.

Estes limites que são estabelecidos à indemnização, poderão consubstanciar, efetivamente, a violação de um direito fundamental, no caso em concreto, do direito à reparação de danos, previsto no art.º 60.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP). Importa, todavia, chamar à colação o regime previsto no art.º 18.º, n.º 2 e n.º 3 da CRP, na medida em que, quando articulado com o seu art.º 60.º, este “direito à reparação de danos” é considerado um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, logo, beneficia desse regime mais forte e mais protetor. Por ter um conteúdo determinado, é passível de aplicação imediata e direta, além de que, vincula entidades públicas e privadas, e, está, efetivamente, sujeito a certas restrições, cujas mesmas estão limitadas constitucionalmente. Ou seja, para este regime, a própria Constituição define um regime restritivo às restrições, que, segundo o Prof. Doutor José Gomes Canotilho, se designa como “os limites dos limites”, precisamente para não anular estes direitos.

Portanto, ao direito fundamental do Consumidor, nomeadamente, o “direito à reparação de danos”, aplicam-se os limites previstos no art.º 18.º, n.º 2 e n.º 3, o que significa que qualquer restrição a este direito deverá obedecer aos limites previstos constitucionalmente, podendo, apenas e somente, ser restringido, com base numa Lei da Assembleia da República, ou, num Decreto-Lei autorizado.

Neste sentido, considera-se que nenhum outro instrumento normativo deveria restringir este direito fundamental do Consumidor, de “força irradiante”.

Assim sendo, entende-se que as normas supra aludidas, dos art.º 34.º, n.º 2.1. da CPU, e, do art.º RL 155, n.º 4 do Regulamento das Correspondências, vêm, efetivamente, estabelecer uma limitação, isto é, uma restrição ao direito de ressarcimento integral dos danos causados aos Consumidores, podendo representar, assim, um injustificado benefício concedido pelo legislador aos Prestadores de Serviços Postais, com o correspondente benefício negativo do Consumidor, razão pela qual se levanta a questão da sua constitucionalidade.

Em suma, perante uma situação de extravio internacional, o Consumidor do serviço postal, encontra-se numa posição de franca debilidade contratual, em relação à posição dominante e de supremacia do agente económico, na medida em que as normas, habitualmente invocadas para determinação do montante indemnizatório, restringem a norma constitucional do art.º 60.º, n.º 1, e o regime de proteção que lhe é assegurado pelo art.º 18.º da Lei Fundamental.

Assim, pese embora a possibilidade de se estar perante uma potencial inconstitucionalidade (por se afigurar incompatível a fixação de limites máximos de responsabilidade aos Prestadores de Serviços Postais com o Direito Constitucional garantido aos Consumidores), mais importante que isso, até porque estamos perante um serviço público essencial (serviço postal – elencado na Lei dos Serviços Públicos Essenciais: Lei n.º 23/96, de 26 de julho), é que estes agentes económicos informem devidamente os Consumidores de que apenas e só através da modalidade de “Declaração de Valor”, poderão salvaguardar o direito a ser integralmente indemnizados pelos danos decorrentes do extravio do objeto postal.

A opção pela “Declaração do Valor” assume maior importância, principalmente, quando os Consumidores procedam ao envio de um conteúdo de valor consideravelmente elevado, ao invés de optarem pelo envio, apenas, através de “correio registado”, “correio azul” ou o “correio normal”.

Ademais, cumpre relembrar que esta legislação confere tutela juridicamente reforçada aos utilizadores dos serviços públicos essenciais, por se reconhecer que estes serviços correspondem à satisfação das necessidades mais elementares, e que assumem um carácter primordial, na vida corrente. Esta proteção consubstancia-se através da imposição de deveres de informação e esclarecimento aos Prestadores de Serviços Postais, quanto às características, condições de prestação e preços do serviço, e de obediência a elevados padrões de qualidade na execução contratual.

Urge, por isso, reforçar este dever de informação e esclarecimento, tendente à efetiva tutela dos direitos e legítimos interesses dos Consumidores, enquanto utentes deste serviço público essencial.

Joana Sousa
Jurista da Direção de Serviços do Consumidor
Com fotografia de Kristina Tripkovic.

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