Procurar
Close this search box.

A diversidade na obra de Íon de Quios

Memorandum
A diversidade (polyeideia) na obra de Íon de Quios

Com os fragmenta de Íon de Quios enriquecemos as nossas perspectivas de análise do séc. V a.C., por vezes excessivamente concentradas em Atenas. Entre poesia e prosa, somos seduzidos por um corpus com diversos saberes

Como realça a Suda – monumental enciclopédia do séc. X –, uma das marcas da produção literária de Íon de Quios (c. 490-480 a.C.) é a diversidade. Embora não nos tenha chegado nenhuma obra na íntegra, desde meados do séc. XX que vários estudos se têm dedicado à análise dos fragmenta e testimonia, revelando, assim, uma obra muito interessante de um autor, aparentemente, periférico. Além da composição de tragédias, ditirambos, poesia lírica, sabemos que escreveu uma obra sobre a fundação e a história mítica de Quios, que para alguns terá sido uma obra relevante no percurso da historiografia antiga, uma outra sobre cosmologias e também registou memórias (hypomnemata). Há um conjunto de fragmentos, em prosa, que parecem integrar um conjunto de textos sobre embaixadas (presbeutikos) ou ‘visitas’ (epidemiai).

No entanto, há muitas dúvidas sobre a organização deste conjunto de fragmentos, não sendo fácil perceber se integrariam ou não a mesma obra. No caso das Epidemiai, M. West (1985), “Ion of Chios”, BICS 32: 75, classifica-a como uma obra pioneira, escrita em forma de diálogo, que demonstra o acesso e a convivência de Íon com conhecidos políticos, figuras militares, escritores e importantes famílias. Devido ao seu teor, esta obra teria um assinalável valor biográfico, podendo ter exercido em autores da época, como Xenofonte (Memorabilia), até por ser citado por Plutarco, o mais conhecido biógrafo da Antiguidade. O facto de Plutarco, um autor dos séculos I e II d.C., fazer referência a Íon, pode ser lido como uma prova da importância das suas narrativas e da influência da técnica biográfica das Epidemiai, nomeadamente ao nível do retrato fisiognomónico. É curioso que Plutarco, num dos passos em que aborda o tema da ‘fortuna’ (tyche) na acção humana (Sobre a fortuna dos Romanos 316d), faça referência a uma sentença do poeta Íon: a ‘fortuna’ e a ‘sabedoria’ (sophia) são coisas diferentes, mas ambas podem fortalecer cidades, embelezar homens, trazendo ‘glória’ (doxa), ‘poder’ (dynamis) e ‘hegemonia’ (hegemonia). Acredita-se que seja uma alusão às Epidemiai de Íon. Contudo, como muitas vezes sucede a quem se dedica ao estudo da Antiguidade Clássica, a ausência de fontes escritas só nos permite colocar hipóteses e algumas conclusões parciais.

Se considerarmos a pervivência das referências e as alusões à produção literária de Íon, sobretudo à sua poesia, não deixa de ser curioso verificar a considerável projecção de um autor de uma pequena ilha do Egeu, conhecida pela qualidade do vinho ou dos figos, mas também pelo sistema democrático, eventualmente anterior ao que Clístenes instituiu em Atenas. De facto, o percurso de Íon de Quios, com ligações a Sófocles, Címon, Ésquilo, Péricles, Sófocles ou Temístocles, das figuras mais relevantes do séc. V a.C., revela uma mundividência alargada e que garantiu à sua obra uma difusão por vários séculos. Entre marcas identitárias da sua ilha e da polis central, Atenas, Íon constrói, por vezes, uma observação do mundo consentânea com a de um cosmopolita. De igual forma, entre prosa e poesia, evidencia um espírito de polímata, ao estilo do pensamento jónico, com capacidade criativa e atento às circunstâncias políticas e sociais do seu tempo. É disso exemplo o uso que faz do corpus mitológico, nas tragédias, por reconhecer o seu poder de influenciar concepções políticas, sociais ou mesmo a identidade cultural.

Esquecido durante muitos séculos, o corpus literário de Íon de Quios poderá, com novas estudos e linhas de interpretação, contribuir para um melhor conhecimento da realidade helénica, sobretudo de espaços mais periféricos, mas, sem dúvida, muito relevantes pela diversidade conceptual, capaz de abrir novos caminhos hermenêuticos a trilhar.

Joaquim Pinheiro
Docente da UMa

Escrito de acordo com a antiga grafia.

DESTAQUES