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Lar, doce lar: o significado profundo das palavras

Além de um significado imediato, conhecido do público em geral, a expressão «Lar, doce lar» preserva vestígios da língua, da cultura e da religião da Roma Antiga, vestígios que, normalmente, acabam por passar despercebidos.

«Lar, doce lar»: eis uma expressão conhecida da maioria. Feliz todo aquele que se pode acolher à protecção de um lar. Em português, a palavra «lar» designa a parte da cozinha onde se acende o lume, o chão da chaminé, sendo sinónimo de «lareira». Por extensão, designa também a casa de habitação, independentemente do seu tamanho, e a família que nela se acolhe. O que poucos terão presente é a realidade que se oculta por detrás destas palavras.

Estamos perante vestígios da língua, da cultura e da religião romanas. De origem etrusca, os Lares eram divindades romanas que velavam pelos recintos domésticos e pelas encruzilhadas. Quando representados, assumiam a forma de adolescentes, apoiando-se apenas num pé e envergando uma túnica curta. Numa das mãos seguravam uma cornucópia. O Lar Familiaris protegia os lugares em geral e as casas em particular, protecção que se estendia sobre toda a família, ou seja, sobre todos aqueles que se abrigavam sob um mesmo tecto: parentes, libertos e escravos.

O centro de uma casa romana era o atrium. Aí se reuniam os membros da familia em redor do fogo, que tanto servia para preparar os alimentos como se revestia de carácter sagrado, ao assinalar a presença do Lar Familiaris. Mais tarde, quando as casas romanas se tornaram mais complexas, a dupla função de lugar de culto do deus e lugar do fogo desdobrou-se. O fogo utilitário passou então para a culina (a cozinha) e culto manteve o seu lugar de honra no atrium, passando a ocupar o lararium, um nicho com frontão triangular onde se guardava a imagem do deus. Do latim lararium deriva, por via erudita, o português «larário».

Era neste altar que se assinalavam acontecimentos importantes, relativos à entrada ou saída de alguém do âmbito familiar (nascimentos, casamentos e mortes). Ao Lar Familiaris eram consagrados os três dias mais solenes no calendário de cada mês: as calendas (calendae), as nonas (nonae) e os idos (idus).

Nas propriedades rurais (uillae), bem como nas encruzilhadas, veneravam-se os Lares Compitales, assim chamados porque se lhes prestava culto no compitum, o lugar em que os domínios de uma propriedade se cruzavam com os das propriedades vizinhas. Era nesse lugar e em honra destas divindades que se celebrava um ritual, a 1 de Janeiro.

O desdobramento entre lugar de culto do Lar Familiaris e lugar do fogo parece não ter ocorrido nas domus da faixa ocidental da Península Ibérica, território que corresponde grosso modo a Portugal. A evidência que atesta esta realidade é o facto de continuarmos a chamar «lar» ao lugar onde arde o fogo. De «lar» deriva o vocábulo português «lareira», tal como, de «fogo», «fogueira».

A memória do culto ao Lar Familiaris e do lugar da casa a ele consagrado surge, assim, como que fossilizada nas nossas palavras «lar» e «lareira». Lembremos, enfim, que o valor sagrado de que se revestia o fogo, em tempos manifestação visível da presença do Lar Familiaris, permanece ainda atestado no facto de continuarmos a chamar «fogo» a uma casa.

Telmo Corujo dos Reis
Professor da UMa

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