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Quando os grandes eram pequenos

(…) O lençol de buganvílias roxas cobria a ribeira. As ruas que a ladeavam eram cheias de árvores, tanto que as chamávamos rua das árvores, e desciam junto com a ribeira até ao mar. A determinada altura da subida, estão estacionados grandes carros carregados de canas à espera da sua vez de ser descarregada, pesada e moída nas máquinas da enorme fábrica que as transformavam em açúcar.

O prazer único de se chupar uma daquelas canas só era permitido se um dos homens que as guardavam, tinha a simpatia de, com algum esforço, tirar uma do molhe onde vinha amarrada para nos oferecer, ou se algum dos “garotos”, como a minha mãe os chamava, que corriam atrás dos carros para roubá–las, deixava cair alguma. Canas-de-açúcar, havia sempre muitas, mas aquelas eram sempre mais apetecíveis.

(…) Na casa da minha avó, havia um grande alguidar de madeira. Servia para amassar pão e bolos. Nos dias que antecediam o Natal, a cozinha fazia parte do dia a dia de toda a gente. Ponham-se os miúdos todos à volta do alguidar, enquanto a minha mãe punha lá dentro os ingredientes: especiarias que vinham da “venda” embrulhadas cada uma no seu papelinho e que ela dava a cheirar antes de as deitar no alguidar, a farinha, as passas, os frutos secos a margarina e finalmente o mel, espesso e escuro e que tinha um cheiro adocicado. Aquilo era tudo misturado com muito cuidado, devagarinho e amassado pelas mãos de uma mulher que conhecia como ninguém aquela arte e que ficava com os dedos todos sujos daquela mistura. No final da função de amassar, era–nos permitido lamber-lhe os dedos doces daquela massa maravilhosa. Depois, a minha avó fazia uma cruz na massa enquanto dizia uma reza (São Vicente te acrescente, São Mamede te levede) como se este último procedimento fosse fundamental para que nos três dias seguintes aquela massa desafiasse as leis da natureza e crescesse ainda mais.

(…) Da janela da cozinha ouvia-se e adivinhava-
-se a chegada dos navios. Era uma festa quando os navios chegavam. Eram monstros enormes que se deslocavam silenciosamente no mar e que traziam e levavam imensa gente. Traziam turistas que movimentavam a cidade e nesse tempo eram designados globalmente e independentemente da sua nacionalidade por “ingleses”. Quando iam embora, partiam com apitos e com a ajuda duns pequenos barcos que se chamavam pilotos e, apesar de serem infinitamente mais pequenos, arrastavam aqueles enormes monstros até ao alto-mar.

Os navios também levavam as pessoas. Uns iam para Lisboa, outros emigravam para os Brasis, Venezuelas, Américas, e em tempos bem piores levaram os meus tios para a guerra do ultramar, deixando as pessoas no molhe, de lenço branco na mão e com as caras banhadas em lágrimas no desespero duma despedida que podia ser a última…Para nós, os miúdos, este movimento do Porto, era sobretudo uma oportunidade de olhar de perto aquele mar, que nos mantinha prisioneiros e ao mesmo tempo nos fascinava.

(…) A camioneta ou “horário” parou num larguinho que tinha uma “venda” onde os homens bebiam vinho e uma fonte onde alguns matavam a sede. Cansada da subida e dos anos de trabalho, a camioneta bafeja um fumo negro do cano de escape e outro esbranquiçado do interior do seu focinho arredondado. O “chaufer” deixa-a descansar, enquanto o “bilheteiro” retira do seu interior um recipiente de borracha em forma de bota que enche na fonte para saciar a sede do velho motor que nos irá permitir continuar o percurso. Três aceleradelas, como que a dar balanço, e a velha camioneta geme arrastando-se pela encosta acima, serpenteando por um caminho com uma lomba muito alta a meio. O caminho é tão estreito que, embora o Verão escalde e os odores humanos dos outros passageiros que enchem aquele cubículo não seja o mais agradável, não nos atrevemos a abrir as janelas sob risco de sermos arranhados violentamente pelo silvado que o rodeia.

A meia encosta, saltamos na paragem habitual deixando o cheiro a fumo, a gasóleo e dos humanos, companheiros desta “viagem aventura” e deparamo–nos com o silêncio, e as cores das bananeiras e da vinha. O odor deixa adivinhar o sabor a uva madura e a mosto saído dos pés dos homens no lagar.

Retratinhos de Infância de Maria da Paz Rodrigues
Mestranda em Gestão Cultural na UMa

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