Dom Sebastião, o rei solteirão

Dom Sebastião, o rei solteirão

António Brehm, geneticista e professor da Faculdade de Ciências da Vida da Universidade da Madeira, volta ao estudo da vida de Dom Sebastião. Desta vez, dá-nos a conhecer os projetos de casamento para o jovem rei.
Detalhe da ilustração da obra CHRONICA DE EL-REI D. SEBASTIÃO, publicada por António Brehm.

Sempre-noiva foi o título dado à infanta D. Maria, duquesa de Viseu e filha mais nova do rei D. Manuel I pelos vários projetos de casamento que se teceram para esta riquíssima princesa portuguesa. A seguir-lhe o exemplo, o seu sobrinho-neto, D. Sebastião foi um “sempre-noivo” que nunca casou apesar dos vários esforços de lhe encontrar uma mulher que assegurasse a continuidade da dinastia.

O fim da vida de D. Sebastião e as suas consequências são bem conhecidas, mas este capítulo dos planos de casamento vêm à luz do dia no livro Os Casamentos do Rei – Os projetos matrimoniais para Dom Sebastião, da autoria de António Brehm, autor de CRÓNICA DE EL-REI D. SEBASTIÃO, editado pela Imprensa Académica, em 2018.

A vida de D. Sebastião parece ser uma paixão antiga para si. Conte-nos um pouco o que levou um geneticista a interessar-se pela história.

A ideia de me voltar para a história pareceu natural depois de tantos anos a trabalhar na história dos portugueses do ponto de vista da genética. As velhas questões de onde viemos, quem somos afinal, que povos de origem geográfica distinta moldaram o que são hoje os portugueses foram o mote para a primeira parte da minha carreira académica. Percorremos algumas das velhas colónias portuguesas e outros países que, de uma forma ou de outra, se cruzaram com os portugueses.

O substrato dos portugueses é como o da maior parte das regiões europeias ocidentais. Radica-se nas populações paleolíticas que aqui chegaram. Outros grupos humanos foram chegando à Península Ibérica, os agricultores do neolítico, os da idade do bronze e depois do ferro. São estes povos antigos que vão moldar o que somos hoje. Os primeiros séculos viram chegar uma miríade de povos de várias regiões da Europa.

Depois temos os celtiberos, os fenícios, os gregos que fundaram colónias na orla ibérica oriental, os cartagineses do norte de África, uma série de povos vindos de regiões como a Germânia. No topo desta já sobrecarregada região de povos distintos ainda temos que considerar a chegada dos judeus já com D. Manuel I, muitos dos quais acabaram por assentar raízes no que é hoje Portugal.

A presença muçulmana na Península Ibérica é absolutamente incontornável e deixaria marcas profundas na população atual até do ponto de vista genético. Os séculos da escravatura (seja subsaariana ou norte africana) foi outro aspeto que também moldará a genética dos portugueses. Foi para perceber todas estas migrações e a sua eco-geografia que trabalhei com os meus colaboradores durante mais de 20 anos. Conhecer as raízes subsaarianas dos portugueses levou-nos a ir procurar em África as nossas raízes.

A História esteve, portanto, sempre a par e passo com os nossos estudos laboratoriais. Especializámo-nos em identificar os indivíduos por meio destas impressões digitais genéticas. D. Sebastião surge naturalmente. É talvez o mais falado dos reis de Portugal e o único que carrega um espectro de mistério devido às circunstâncias da sua morte. Tornou-se apetecível resolver a questão dos seus restos mortais através de uma perícia de identificação ou determinação de paternidade.

Dom Sebastião levou-me, portanto, a rever a história e a interessar-me por ela. Ir à procura de fontes escritas que desvendassem o segredo da sua morte tornou-se numa espécie de análise pericial forense. Também deveria haver uma análise forense literária. Daí surgiu a ideia de aplicar a nossa expertise em genética molecular.

Fazer um teste de paternidade às ossadas que, sabemos, se encontram por detrás do mausoléu existente no Mosteiro dos Jerónimos, e compará-las com as do seu pai, que também aí está sepultado, deveria ser uma tarefa fácil e sobretudo colocaria Portugal no grupo dos países que já fizeram estudos genéticos aos seus reis.

Já na CRÓNICA DE EL-REI D. SEBASTIÃO, publicada em 2018 pela Imprensa Académica, os seus comentários denotam um interesse que vai para além da personagem histórica. Que significado tem esta época para si?

Não se pode falar de D. Sebastião sem falar do mito que rodeia a sua morte. E porque a sua morte deu origem a uma nova dinastia com três reis, o século XVI é, sem dúvida, um século importante e interessante. A verdade é que mexer com D. Sebastião levantou uma série de outros problemas paralelos, como crónicas nunca editadas, histórias conhecidas vagamente, mas nunca contadas à luz do relato de terceiros, como é a fantástica narrativa da viagem que um cardeal realizou às cortes ibéricas a mando de Pio V.

Assuntos como este tornaram-se para mim tão familiares como antes o haviam sido os da genética. E depois, a história é para mim uma evolução pessoal.

Tendo feito toda a minha carreira na genética molecular, uma pessoa chega a um ponto em que deseja dar outros contributos, de outro tipo, sobretudo que preencham cada um de nós da melhor forma. Chega a altura de fazer outras coisas. Complementares ou não. Penso que quem idealizou o processo de Bolonha estava a pensar como eu.

Na confluência, ou oposição, do mito e da história, é impossível não perguntarmos sobre como vê a recusa oficial para a abertura do túmulo de D. Sebastião que, em 2015, um conjunto de cientistas (geneticistas moleculares, antropólogos, geólogos, arquitetos, engenheiros e historiadores), em que se incluía, propusera. Ainda precisamos de mitos salvadores?

Todo esse processo foi lamentável. Pôs a ridículo a mentalidade tacanha portuguesa. O grupo de trabalho era suficientemente forte para que pudessem ter dado autorização. A diretora do Mosteiro à época mostrou-se muito simpática e interessada. O patriarcado não se opôs desde que as operações não pusessem em causa o culto. Esbarrou numa incompetência total dos poderes estabelecidos na Direção Geral do Património.

Várias reuniões para esclarecer o que era suposto fazer, as várias etapas e os intervenientes em cada uma delas. Foi impossível passar por cima do establishment. Os próprios reitores das universidades da Madeira e de Coimbra apelaram para uma reunião com o Presidente da República que nem resposta lhes deu. Para um homem que telefona às apresentadoras dos business shows a dar parabéns, mas não se digna responder aos reitores das universidades (a ideia era termos o seu patrocínio para a operação), é este o país que temos.

No fundo, eu nem sequer acho que nos tivessem ignorado por medo de teorias fantasistas e de conspiração sobre o mistério se Sebastião foi ou não morto em África, se Filipe II enganou todos trazendo um qualquer esqueleto para os Jerónimos.

Ignoraram-nos simplesmente por incúria, por desleixo, por incompetência.

Entrevista conduzida por Timóteo Ferreira.
ET AL.
Com detalhe da ilustração da obra CHRONICA DE EL-REI D. SEBASTIÃO, publicada por António Brehm.

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