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Na praxe da Universidade da Madeira, “as tradições dos outros não importam, o importante é aquela que vocês vão criar”

Hélder Maurício e Branca de Almeida são dois nomes emblemáticos da História, pouco conhecida ou difundida, da nossa Academia. Quando a Universidade da Madeira celebra o seu 35.º aniversário, por enquanto sem eventos que assinalem essa efeméride atingida no passado mês de setembro, a ET AL. publica uma entrevista com os dois antigos estudantes sobre uma componente da tradição académica, a praxe.
Caloiros no Colégio dos Jesuítas do Funchal, nos anos 1990.

Quando nos questionamos se “a Praxe já não é o que era?”, falámos com dois alumni sobre as suas vivências enquanto caloiros da Universidade da Madeira (UMa) e, posteriormente, praxistas.

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Nos distantes anos 1990, Hélder Maurício e Branca de Almeida foram caloiros e praxistas, viveram a vida académica com energia e força. Hélder Maurício, que passou pela Tuna Universitária da Madeira, e Branca de Almeida, integrante da Tuna D’Elas, foram estudantes no Colégio dos Jesuítas do Funchal, quando a Academia madeirense vivia os seus primeiros anos, após a sua fundação, em 1988.

Algumas décadas depois, como vês as atividades de praxe que aconteciam no antigo Colégio dos Jesuítas?

Hélder Maurício (HM) Vejo fundamentalmente com enorme saudade, quer do ambiente académico como dos colegas, alguns que infelizmente já partiram. Era outra época, tudo era novidade e sentíamo-nos bem ao participar nas atividades. Em algumas atividades tentávamos uma envolvência da Sociedade, de modo a marcarmos a nossa presença na cidade. Aliás, muito do espírito era o de criar cá “a tradição” de que muito se ouvia muito falar de lá, de fora. Recordo-me de um dia ter perguntado a um elemento de uma tuna de Coimbra sobre a tradição académica em Coimbra, e ele me ter dito “que as tradições dos outros não importam, o importante é aquela que vocês vão criar”. No fundo sentíamo-nos bem por estarmos a criar uma tradição, a nossa tradição.

Branca de Almeida (BA) Bem, não existindo ainda o Campus da Penteada, todas as atividades praxistas eram executadas no centro do Funchal e, embora as aulas ocorressem em vários edifícios, as praxes ocorriam apenas no Colégio dos Jesuítas e fora deste em ocasiões muito específicas como: Batismo, Procissão das Velas, saraus académicos, Desfile dos Finalistas e respetivo Corte das Fitas, etc. Dentro do Colégio dos Jesuítas as regras eram poucas e simples, pelo menos aquelas que me lembro. Os Caloiros eram obrigados a usar sempre a insígnia, que era igual para todos os cursos e era uma chucha, pois éramos os bebés da nossa academia. Lembro-me que os caloiros não podiam pisar uma passadeira verde que existia nos corredores do Colégio e que por sinal era bastante larga, o que fazia com que tivessem de percorrer sempre o dobro da distância para apenas mudar para a sala de aula que ficava do lado oposto. Os trajados não eram muitos, pois o traje tinha sido aprovado um ou dois anos atrás apenas, mas sempre que o caloiro via um trajado tinha que lhe fazer uma vénia e o cumprimentar com um “Sr.(a) Dr.(a)” ou “Sr.(a) Eng.(a)”. Só podia praxar quem tivesse três ou mais matrículas e podiam praxar caloiros de qualquer curso. As praxes aplicadas não podiam por em causa a saúde física ou mental dos caloiros. Etc. As sanções ou as praxes aplicadas eram, em geral, pequenas tarefas, como por ex.: ir buscar fotocópias ou café, ou então participar em pequenos jogos como o Twister, Xadrez Gigante, etc. O objetivo era sempre o de se ter um momento bem passado e divertido. Lembro-me também das Quartas-Feiras Académicas, onde se vestia o traje só porque sim, onde, quase sempre, também havia uma festa no átrio do colégio, organizado por um ou mais do que um curso com fins de angariar dinheiro para a viagem de finalista, e onde apenas estudantes universitários podiam entrar, mostrando o cartão da universidade ou a insígnia à entrada. Nestas festas não havia praxes, mas havia muito convívio e não é preciso dizer que as aulas de quinta-feira de manhã eram muito complicadas.

Nos anos 90, com uma Universidade muito jovem, existiam dificuldades para os professores e a população aceitar as atividades de praxe?

(HM) Muitas das nossas atividades eram realizadas no edifício do Castanheiro [Colégio dos Jesuítas], mas também em outros locais onde havia aulas. Estou a me recordar do edifício na rua Bela de São Tiago, perto da atual residência universitária. Sempre havia vozes que discordavam da praxe, era normal e compreensível, mas cabia a nós sabermos divulgar as tradições de forma saudável, divertida e envolvente. Esse também foi sempre o meu foco em especial quando fui Dux. Sempre encarei a praxe como um ambiente de festa, de convívio, de ajuda, apoio e envolvência da comunidade. O importante era ajudar os novos alunos a se integrar, tão e somente isso. A praxe para mim sempre foi e é uma receção de boas vindas, como tal deveremos tratar bem quem recebemos e mostrar a nossa casa, nunca gostei de ver humilhações e coisas que possam ferir a pessoa, isso para mim já fugia ao que eu entendo como praxe académica.

(BA) Não me lembro de existir alguma dificuldade dos professores em lidaram com a praxe, pois estes vinham muitas vezes de outras universidade onde a praxe era comum, para não falar que era estritamente proibida a praxe dentro das salas de aulas, nem a praxe em modo algum poderia impedir uma aluno(a) a assistir as suas aulas, nem interferir com o bom funcionamento das aulas, nomeadamente o nível de barulho nos corredores ou no pátio. Quanto à população em geral, inicialmente existia alguma estranheza em especial no dia do batismo, mas com o passar dos anos, foi sendo encarado com naturalidade e muitas vezes até aplaudido. De referir que inicialmente o batismo tinha lugar na fonte do largo do Município, estando vazia no meu ano de caloira, o local foi transladado para a fonte da Assembleia Regional e dois anos mais tarde, devido a esta estar também vazia, então passou para a praia na avenida do Mar. Durante outras manifestações como Desfile dos Finalistas, a Cerimónia do Corte das Fitas, etc., eram muito bem acolhidas pela população, pois eram momentos em que a Universidade apresentava os novos Dr.(a)s e Eng.(a)s à comunidade, onde os pais, os avós, os amigos e a população em geral manifestava o seu orgulho perante esta conquista dos estudantes. Neste desfile muitas vezes faziam parte carros decorados e até autocarros descapotáveis onde os estudantes não finalistas também se juntavam à festa. Recordo com muito carinho o meu Desfile de Finalista, pois foi um momento muito feliz da minha vida. Outro momento de interação da Praxe e Academia com população eram os Saraus Académico que ocorriam no largo do Colégio. Em geral eram dois por ano, um na Semana dos Caloiros e um na Semana Académica. Estes saraus eram um ponto alto no ano praxístico-académico, pois eram estes que encerravam estas semanas, sendo no fim destes eventos que os estudantes praxistas subiam na hierarquia. Para a população em geral, eram um espetáculo/evento muito esperado, procurado e participado, havendo anos em que se ultrapassou largamente as duas mil pessoas. Os amantes de tunas tinham a oportunidade de ver as tunas da casa mas também de ver tunas de outras academias, pois eram sempre convidada pelo menos uma tuna de fora. Ainda hoje tenho muitas pessoas a me perguntar por esses eventos, e indagar para quando um retorno desses eventos no largo do Colégio. A nível pessoal, recordo o meu Sarau da Semana Académica como se fosse hoje, mantive a compostura até termos começado a cantar o “Adeus UMa” em que comecei a chorar e não consegui cantar mais nada até ao fim da atuação. É mesmo uma recordação para a vida. Muitas mais coisas há para relatar, pois as memórias são como as cerejas, mas como o texto já vai um pouco longo ficará para uma próxima.

Hélder Maurício e Branca de Almeida foram entrevistados para ET AL. no outono de 2022.

Entrevista conduzida por Luís Eduardo Nicolau
ET AL.
Com fotografia do arquivo da ACADÉMICA DA MADEIRA.

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