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Antiguidade clássica

Coletânea de textos antigos de Ginecologia

As Edições Húmus apresentaram uma coletânea que reúne os textos mais importantes da tradição médica sobre doenças das mulheres. A publicação contou com a organização de Cristina Santos Pinheiro e Joaquim Pinheiro.

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A diversidade na obra de Íon de Quios

Memorandum A diversidade (polyeideia) na obra de Íon de Quios Com os fragmenta de Íon de Quios enriquecemos as nossas perspectivas de análise do séc. V a.C., por vezes excessivamente concentradas em Atenas. Entre poesia e prosa, somos seduzidos por um corpus com diversos saberes Como realça a Suda – monumental enciclopédia do séc. X –, uma das marcas da produção literária de Íon de Quios (c. 490-480 a.C.) é a diversidade. Embora não nos tenha chegado nenhuma obra na íntegra, desde meados do séc. XX que vários estudos se têm dedicado à análise dos fragmenta e testimonia, revelando, assim, uma obra muito interessante de um autor, aparentemente, periférico. Além da composição de tragédias, ditirambos, poesia lírica, sabemos que escreveu uma obra sobre a fundação e a história mítica de Quios, que para alguns terá sido uma obra relevante no percurso da historiografia antiga, uma outra sobre cosmologias e também registou memórias (hypomnemata). Há um conjunto de fragmentos, em prosa, que parecem integrar um conjunto de textos sobre embaixadas (presbeutikos) ou ‘visitas’ (epidemiai). No entanto, há muitas dúvidas sobre a organização deste conjunto de fragmentos, não sendo fácil perceber se integrariam ou não a mesma obra. No caso das Epidemiai, M. West (1985), “Ion of Chios”, BICS 32: 75, classifica-a como uma obra pioneira, escrita em forma de diálogo, que demonstra o acesso e a convivência de Íon com conhecidos políticos, figuras militares, escritores e importantes famílias. Devido ao seu teor, esta obra teria um assinalável valor biográfico, podendo ter exercido em autores da época, como Xenofonte (Memorabilia), até por ser citado por Plutarco, o mais conhecido biógrafo da Antiguidade. O facto de Plutarco, um autor dos séculos I e II d.C., fazer referência a Íon, pode ser lido como uma prova da importância das suas narrativas e da influência da técnica biográfica das Epidemiai, nomeadamente ao nível do retrato fisiognomónico. É curioso que Plutarco, num dos passos em que aborda o tema da ‘fortuna’ (tyche) na acção humana (Sobre a fortuna dos Romanos 316d), faça referência a uma sentença do poeta Íon: a ‘fortuna’ e a ‘sabedoria’ (sophia) são coisas diferentes, mas ambas podem fortalecer cidades, embelezar homens, trazendo ‘glória’ (doxa), ‘poder’ (dynamis) e ‘hegemonia’ (hegemonia). Acredita-se que seja uma alusão às Epidemiai de Íon. Contudo, como muitas vezes sucede a quem se dedica ao estudo da Antiguidade Clássica, a ausência de fontes escritas só nos permite colocar hipóteses e algumas conclusões parciais. Se considerarmos a pervivência das referências e as alusões à produção literária de Íon, sobretudo à sua poesia, não deixa de ser curioso verificar a considerável projecção de um autor de uma pequena ilha do Egeu, conhecida pela qualidade do vinho ou dos figos, mas também pelo sistema democrático, eventualmente anterior ao que Clístenes instituiu em Atenas. De facto, o percurso de Íon de Quios, com ligações a Sófocles, Címon, Ésquilo, Péricles, Sófocles ou Temístocles, das figuras mais relevantes do séc. V a.C., revela uma mundividência alargada e que garantiu à sua obra uma difusão por vários séculos. Entre marcas identitárias da sua ilha e da polis central, Atenas, Íon constrói, por vezes, uma observação do mundo consentânea com a de um cosmopolita. De igual forma, entre prosa e poesia, evidencia um espírito de polímata, ao estilo do pensamento jónico, com capacidade criativa e atento às circunstâncias políticas e sociais do seu tempo. É disso exemplo o uso que faz do corpus mitológico, nas tragédias, por reconhecer o seu poder de influenciar concepções políticas, sociais ou mesmo a identidade cultural. Esquecido durante muitos séculos, o corpus literário de Íon de Quios poderá, com novas estudos e linhas de interpretação, contribuir para um melhor conhecimento da realidade helénica, sobretudo de espaços mais periféricos, mas, sem dúvida, muito relevantes pela diversidade conceptual, capaz de abrir novos caminhos hermenêuticos a trilhar. Joaquim Pinheiro Docente da UMa Escrito de acordo com a antiga grafia.

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Pragas e pestilências ou o desespero do ser humano perante um inimigo invisível

A ideia de que vivemos tempos inéditos, de que nunca nada disto antes se viu, aliada às imagens de ruas desertas, de cadáveres e caixões amontoados em igrejas ou armazéns, de unidades de cuidados intensivos em que nada mais se ouve que não o estertor da morte e os sons impiedosos das máquinas, tem-nos sido trazida pelos meios de comunicação social nestes que foram meses de apreensão e inquietude. É, porém, um grave erro histórico pensarmos que a ameaça de um inimigo invisível, mas omnipresente, tem algo de novo. Ao longo da sua história a humanidade enfrentou surtos epidémicos de causas, origens e características diversas, mas que tiveram em comum precisamente esta sensação de impotência e de incapacidade que tem o condão de nos reduzir, enquanto seres humanos, à nossa reconhecida e por vezes bem lembrada impotência. Para cumprirmos o objectivo desta secção – Memorandum, isto é, “o que deve ser lembrado” – queremos lembrar neste número alguns dos tópicos mais frequentes nos textos gregos e romanos sobre surtos de doenças contagiosas. O que propomos é um desafio do tipo “descubra as diferenças” entre o que nos legou a cultura clássica e o que enfrentamos na actualidade. Ao leitor deixamos toda a liberdade para estabelecer as ligações que e como quiser. Baseamo-nos em textos de épocas diversas, desde Homero a Galeno, e de géneros literários distintos relacionados com a épica, a tragédia, a historiografia, a medicina… Um dos elementos mais significativos nestes textos e, em especial, naquele que constituiu, pelos séculos fora, uma espécie de modelo para a descrição de pestilências – referimo-nos à obra de Tucídides, História da Guerra do Peloponeso, que descreve a peste de Atenas de 430-426 a. C. – é o relato vivo e complexo das consequências de ordem social e moral deste tipo de enfermidades. A inexistência de distinções de ordem social, baseadas na idade, no sexo, na riqueza, no estatuto, é reconhecida como uma inversão das normas. O contágio que se espalha sem fazer distinção entre o jovem e o idoso, a mulher e o homem, o pobre e o rico, o escravo e o cidadão livre representa a destruição da ordem social numa comunidade que tem os seus fundamentos precisamente na diferença. Nas cidades que se apresentam aos olhos do leitor vêem-se moribundos e cadáveres, tanto espalhados e insepultos pelas ruas, como no interior dos edifícios públicos e privados. O abandono dos rituais fúnebres – que aumenta, como os autores reconhecem, o perigo de contágio – é também um sinal da decadência moral que se identifica em sociedades em que o desespero e a certeza de uma morte próxima tornam irrelevante o cumprimento da lei. A estrutura das sociedades antigas, fortemente enraizada nas relações familiares, é arruinada pelo medo do contágio. Os doentes vêem-se abandonados e os poucos que deles se aproximam são, muitas vezes, cremados na mesma pira, diz-nos Tácito. Por fim, um esclarecimento. Ainda que se diga que os antigos não tinham conhecimento correcto das formas de contágio, é preciso ter em consideração que: 1) sabiam que algumas doenças afectavam apenas grupos ou comunidades; 2) que estas doenças passavam de um indivíduo para outro. A explicação mais frequente para este tipo de doenças baseava-se na existência de miasmata no ar, que teriam origem em vapores insalubres, como os exalados pelos cadáveres num campo de batalha ou pelas águas estagnadas e fétidas. Esta explicação manteve-se durante séculos, por vezes aliada à vontade e à ira divinas, pelo menos até que, na sua obra De contagione et contagiosis morbis, publicada em 1546, Girolamo Fracastoro apresentou a teoria de que as doenças epidémicas são causadas por partículas minúsculas que são transmitidas por um indivíduo doente para um indivíduo em contacto com ele. Nihil novi, nada de novo, portanto, e, também como no passado, aprenderemos e avançaremos, recordados mais do que nunca de omnia mors aequat, a morte nivela tudo. Cristina Santos Pinheiro Professora da UMa

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Memorandum

Os fragmenta e os testimonia permitem-nos perceber que Herófilo merece um lugar especial na História da Medicina, pelo conhecimento que desenvolveu em várias áreas, da Anatomia à Obstetrícia. Herófilo de Calcedónia (c. 330-250 a. C.) deu um contributo muito valioso para a matéria médica, em especial na área da ginecologia. Porém, tal como sucedeu, infelizmente, à maioria do conhecimento científico do período helenístico, a sua obra perdeu-se quase por completo, restando alguns fragmenta e cerca de 250 testimonia, reunidos na impressionante obra de Heinrich von Staden, Herophilus: The art of medicine in early Alexandria (1989). Discípulo de Praxágoras de Cós (IV a. C.), que terá sido o primeiro a distinguir as veias das artérias e um dos responsáveis pela transmissão do Corpus Hippocraticum, e também discípulo de Crisipo de Cnidos (IV a. C.), Herófilo desenvolveu a sua actividade médica, sobretudo, em Alexandria, aproveitando um contexto social e cultural favorável, proporcionado por Ptolomeu Soter e Ptolomeu Filadelfo. Certamente influenciado pelas lições de Praxágoras, consolidou uma visão tripartida da medicina: conhecimento relacionado com a saúde; conhecimento relacionado com a doença; e um conhecimento neutro, que inclui a farmacologia, a cirurgia e a dietética. Das onze obras que a tradição atribui a Herófilo, seis são consideradas autênticas, a saber: Anatomia, Sobre as pulsações, Obstetrícia, Terapêuticas, Dietética, Contra as opiniões comuns. Por aquilo que se conhece, a transmissão da obra de Herófilo foi garantida, numa primeira fase, por dois factores: como Ptolomeu Evergetes II decidiu expulsar, entre outros, médicos, isso teve, desde logo, uma consequência positiva que foi a difusão da obra de Herófilo, sem se circunscrever a Alexandria; foi, porém, a fundação da Escola dos Herofilianos, no século I a. C., que contribuiu de forma decisiva para que a obra de Herófilo tenha sido transmitida e sobrevivido ao incêndio do Museu de Alexandria, em 48 a. C. Acrescente-se, ainda, o papel que especialmente Galeno teve na sua transmissão, garantindo que até ao século VI a obra de Herófilo pudesse ter sido lida e estudada. Além das descobertas relacionadas com o sistema nervoso e o cérebro, talvez o contributo mais significativo de Herófilo para a História da Medicina tenha sido ao nível da anatomia. De alguma forma, rompeu com o método habitual de se descrever a anatomia humana a partir da animal (cf. Aristóteles, História dos Animais 502b). Aproveitando um contexto cultural distinto daquele que se viveria em Atenas ou em outras cidades, Herófilo teve em Alexandria condições ao seu dispor para proceder à dissecção e, segundo algumas fontes, também à vivissecção, aprofundando, desse modo, o conhecimento sobre a anatomia, o que leva alguns a considerá-lo o ‘pai da anatomia’. Em vários textos, atribui-se a Herófilo a descoberta dos dídymoi (‘ovários’) e a identificação dos ‘ductos espermáticos’, embora seja um tema polémico, uma vez que alguns consideram que já Díocles de Caristo o havia feito. Na verdade, estes ganhariam o nome do anatomista italiano, Gabriele Fallopio (‘trompas de Falópio’). Apesar das várias dúvidas geradas pela transmissão textual, Herófilo e a doxografia herofiliana desempenharam um papel relevante na tradição médica, ainda que o nosso conhecimento e também o dos humanistas, estejam marcados, de forma indelével, pela leitura (decisiva) de Galeno, médico grego e cidadão do Império. Joaquim Pinheiro Professor da UMa

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“Gynaikeia”, coisas de mulheres…

Gynaikeia é uma palavra grega que, como substantivo plural, constitui o título de alguns tratados médicos antigos dedicados às doenças femininas. Significa, à letra, “o que diz respeito às mulheres” e pode designar os órgãos sexuais femininos, as doenças específicas das mulheres ou os remédios para essas doenças, ou a menstruação. Na história da medicina, estes tratados foram pouco estudados, quer por se considerar que abordavam um tema com pouco interesse, que normalmente se relegava para o âmbito feminino, quer porque as matérias que exploravam eram consideradas pouco dignas de atenção. A saúde reprodutiva das mulheres foi, no entanto, temática presente na medicina ocidental desde os seus primórdios. Do conjunto de textos médicos atribuídos a Hipócrates, fazem parte três livros a que se atribui o título de Peri gynaikeion, Sobre as doenças das mulheres, e que devem ter sido formados por um processo de compilação provavelmente terminado em finais do século V ou início do século IV a. C. Alguns séculos mais tarde, Sorano, médico grego que praticou medicina em Roma no século I-II d. C., compôs um tratado de ginecologia com o mesmo título. Este tratado foi traduzido e adaptado por vários autores posteriores e o seu conhecimento manteve-se durante séculos na Europa, especialmente graças à versão de um autor desconhecido, de nome Mústio ou Múscio, que, preservada em múltiplos manuscritos, é integrada nos compêndios de ginecologia impressos no Renascimento. No início do século XVI, a redescoberta dos textos hipocráticos sobre ginecologia está na base de um novo interesse por esta área da medicina. O facto de o “pai da medicina” poder ser também considerado “o pai da medicina das mulheres” legitima que o médico de instrução universitária se dedique ao que até então tinha sido maioritariamente um campo de intervenção feminina, dominado por parteiras sem preparação teórica. Nomes como o dos italianos Ludovico Bonaccioli e Girolamo Mercuriale (mais conhecido pelo seu tratado De re gymnastica), o espanhol Luis de Mercado, os franceses Nicholas de la Roche e François Rousset (autor do primeiro tratado médico sobre cesariana) ou o nosso tão pouco reconhecido Rodrigo de Castro Lusitano tornaram-se referências na génese da ginecologia como uma especialidade médica, dando continuidade à concepção hipocrática de que as mulheres carecem de um tratamento médico diferenciado. Como se lê no tratado hipocrático (1.62), as doenças das mulheres são difíceis de perceber porque “as mulheres têm doenças próprias e por vezes nem elas próprias sabem o que lhes está a acontecer até experimentarem as doenças que são causadas pela menstruação e irem envelhecendo.” Mas o papel dos médicos é igualmente importante, já que, “por não se informarem com exactidão do motivo de uma doença concreta” a tratam “como uma doença de homens”. Com base nesta diferenciação entre dois corpos que têm naturezas e condições diferentes, construiu-se um conjunto de textos médicos que caiu no esquecimento e que, na prateleira dos reservados de uma biblioteca ou num documento pdf do Google books, aguardam a devida atenção. Cristina Santos Pinheiro Universidade da Madeira/Centro de Estudos Clássicos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

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Os sete dias da semana, herança do Mundo Antigo

Partindo da observação das fases da Lua, os antigos Caldeus inventaram a semana constituída por sete dias. Este sistema, adoptado entretanto por outros povos, viria a ser transmitido por Roma a todo o Mundo Ocidental. Poderíamos pensar que a influência dos corpos celestes nos assuntos humanos é uma excentricidade de astrólogos e de supersticiosos, mas ela é bem real. Vamos ocupar-nos de um caso manifesto: os sete dias da semana. O agrupar dos dias em ciclos de sete tem a sua origem na antiga Babilónia e resulta da observação das fases da Lua. A duração do ciclo lunar completo é de cerca de 28 dias. Partindo desta noção, os astrónomos Caldeus verificaram que, a cada fase, correspondiam muito aproximadamente sete dias e daqui vem a nossa «semana» (vocábulo com origem no latim septimana, ou seja, «sete manhãs»). Os Hebreus cedo adoptaram esta organização e ela ficou consagrada no livro do Génesis, tradicionalmente atribuído a Moisés, onde a Criação do Mundo se articula em seis dias de trabalho e um sétimo dia de descanso. Nele se fixou o shabbat, consagrado ao descanso e à oração. Quanto às suas denominações, os Caldeus designaram cada um dos sete dias pelos nomes dos corpos do seu sistema planetário: o Sol e a Lua, em primeiro lugar, e depois os restantes, pela seguinte ordem: Marte, Mercúrio, Júpiter, Vénus e Saturno. Este sistema passou depois para a Ásia Menor e Egipto, para Gregos e Romanos. Estes deram aos sete dias as seguintes designações: Solis dies, Lunae dies, Martis dies, Mercurii dies, Iouis dies, Veneris dies e Saturni dies. Daqui resulta a maioria das designações que conhecemos nas várias línguas românicas. Assim, em francês temos: dimanche, lundi, mardi, mercredi, jeudi, vendredi e samedi. Em castelhano e italiano, as designações são semelhantes. Notemos que, nestas línguas, tal como em português, o primeiro e o sétimo dia trocaram as suas designações para «domingo» (do latim dies Dominica, ou seja, «dia do Senhor», nome de origem cristã, por ter sido o dia da Ressurreição) e «sábado» (do latim sabbatum, designação de origem hebraica). Como os restantes dias tinham nomes de divindades pagãs, facilmente se compreende que a Igreja Cristã olhasse para eles com desagrado e, por isso, adoptou um conjunto de designações baseado no sistema numérico (antes criado pelos Hebreus), acrescentando-lhes a palavra latina feria («dia de festa» ou «dia de oração»). Assim, em latim passou a dizer-se: secunda feria, tertia feria, quarta feria, quinta feria e sexta feria. Este sistema apenas vingou em Portugal (e também na Grécia!). As línguas germânicas e escandinavas receberam o sistema pagão utilizado pelos Romanos, mas adaptaram-no ao nome das suas divindades correlativas dos deuses romanos. Assim, em inglês temos: Sunday, Monday, Tuesday, Wednesday, Thursday, Friday e Saturday. Note-se que o sábado e o domingo conservaram aqui as antigas designações. As línguas da Escandinávia mantiveram este sistema, mas introduziram uma novidade: o sétimo dia passou a ser o «dia do banho» (em norueguês e dinamarquês lørdag, em sueco lördag). Quando organizarmos as nossas vidas em ciclos de sete dias, com cinco dias de trabalho e dois de descanso, estamos, sem disso termos consciência, a reger-nos pelas fases da Lua: uma herança do Mundo Antigo que nos foi legada por Roma. Telmo Reis Professor da UMa

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“A César o que é de César…”

O título deste texto é, como se sabe, parte da resposta proferida por Jesus Cristo quando questionado, de forma provocatória, sobre a legitimidade de pagar tributo a Roma. Terá dito mostrando a efígie do imperador numa moeda romana: “Dai, pois, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.” O César representado na moeda era provavelmente Tibério, que por adopção herdara o cognome Caesar do seu padrasto, ele próprio também César por adopção. Na origem, Caesar é cognome da família de Gaio Júlio César, célebre general e estadista romano, conhecido entre os mais novos principalmente graças às aventuras de Astérix e Obélix, e provavelmente uma das personagens mais conhecidas da história romana. Conhecida e citada! Todos nós já alguma vez usámos uma das suas célebres frases: “Cheguei, vi e venci!” (em Latim, veni, vidi, vici) ou “Os dados foram lançados” (Alea iacta est), a primeira usada para demonstrar a extrema facilidade de uma conquista, a segunda usada no contexto de uma situação que é irreversível. Outras expressões que a César devemos serão menos conhecidas mas o seu uso é frequente. Lembremos a tantas vezes mencionada mulher de César, a quem não basta SER séria, é preciso PARECER séria. Poucos, ainda assim, saberão que a expressão – que valoriza a imagem e a aparência, acima da essência – tem origem num episódio da vida conjugal de César. Numa festividade religiosa reservada às mulheres, em honra da Bona Dea, uma deusa associada à fertilidade, e celebrada a 3 de Dezembro, foi detectada a presença de um homem, Clódio, na casa de César, o que levantou suspeitas acerca do comportamento da então esposa de César, Pompeia. Foi Aurélia, a mãe de César e sogra de Pompeia, quem se apercebeu do intruso (por esta razão, sabemos que César não pode ter nascido de cesariana, já que a mãe não teria sobrevivido, na altura, a uma intervenção deste tipo)… Espalhado o boato, que foi aproveitado pelos inimigos políticos quer de César quer de Clódio, meses depois e já divorciado de Pompeia, ao perguntarem a César em tribunal por que razão se divorciara da esposa, terá dito, de acordo com Plutarco: “porque considerei que a minha esposa não deve suscitar suspeitas”. Quer se tivesse tratado de uma estratégia política, quer tivesse sido uma justificação conveniente para o divórcio, o que é certo é que para a esposa de César nunca mais foi suficiente ser moralmente correcta. A César devemos também a ideia de que as pessoas acreditam naquilo que querem, tenham ou não razões para o fazerem. A ideia aparece numa das suas obras, A guerra das Gálias (homines id quod volunt credunt). Trata-se, na verdade, de um comentário a uma estratégia militar: César convenceu um gaulês apoiante dos romanos a fingir-se desertor e a transmitir aos gauleses a ideia de que os romanos enfrentavam grandes dificuldades. Entusiasmados com estas falsas notícias, os gauleses, sem questionarem a veracidade das informações, atacaram os romanos que, obviamente, os esperavam e os venceram. Ficou a expressão, como um aviso contra as “inverdades” e contra os “factos alternativos”… Cristina Santos Pinheiro Professora da UMa e investigadora do UL-Centro de Estudos Clássicos

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Lar, doce lar: o significado profundo das palavras

Além de um significado imediato, conhecido do público em geral, a expressão «Lar, doce lar» preserva vestígios da língua, da cultura e da religião da Roma Antiga, vestígios que, normalmente, acabam por passar despercebidos. «Lar, doce lar»: eis uma expressão conhecida da maioria. Feliz todo aquele que se pode acolher à protecção de um lar. Em português, a palavra «lar» designa a parte da cozinha onde se acende o lume, o chão da chaminé, sendo sinónimo de «lareira». Por extensão, designa também a casa de habitação, independentemente do seu tamanho, e a família que nela se acolhe. O que poucos terão presente é a realidade que se oculta por detrás destas palavras. Estamos perante vestígios da língua, da cultura e da religião romanas. De origem etrusca, os Lares eram divindades romanas que velavam pelos recintos domésticos e pelas encruzilhadas. Quando representados, assumiam a forma de adolescentes, apoiando-se apenas num pé e envergando uma túnica curta. Numa das mãos seguravam uma cornucópia. O Lar Familiaris protegia os lugares em geral e as casas em particular, protecção que se estendia sobre toda a família, ou seja, sobre todos aqueles que se abrigavam sob um mesmo tecto: parentes, libertos e escravos. O centro de uma casa romana era o atrium. Aí se reuniam os membros da familia em redor do fogo, que tanto servia para preparar os alimentos como se revestia de carácter sagrado, ao assinalar a presença do Lar Familiaris. Mais tarde, quando as casas romanas se tornaram mais complexas, a dupla função de lugar de culto do deus e lugar do fogo desdobrou-se. O fogo utilitário passou então para a culina (a cozinha) e culto manteve o seu lugar de honra no atrium, passando a ocupar o lararium, um nicho com frontão triangular onde se guardava a imagem do deus. Do latim lararium deriva, por via erudita, o português «larário». Era neste altar que se assinalavam acontecimentos importantes, relativos à entrada ou saída de alguém do âmbito familiar (nascimentos, casamentos e mortes). Ao Lar Familiaris eram consagrados os três dias mais solenes no calendário de cada mês: as calendas (calendae), as nonas (nonae) e os idos (idus). Nas propriedades rurais (uillae), bem como nas encruzilhadas, veneravam-se os Lares Compitales, assim chamados porque se lhes prestava culto no compitum, o lugar em que os domínios de uma propriedade se cruzavam com os das propriedades vizinhas. Era nesse lugar e em honra destas divindades que se celebrava um ritual, a 1 de Janeiro. O desdobramento entre lugar de culto do Lar Familiaris e lugar do fogo parece não ter ocorrido nas domus da faixa ocidental da Península Ibérica, território que corresponde grosso modo a Portugal. A evidência que atesta esta realidade é o facto de continuarmos a chamar «lar» ao lugar onde arde o fogo. De «lar» deriva o vocábulo português «lareira», tal como, de «fogo», «fogueira». A memória do culto ao Lar Familiaris e do lugar da casa a ele consagrado surge, assim, como que fossilizada nas nossas palavras «lar» e «lareira». Lembremos, enfim, que o valor sagrado de que se revestia o fogo, em tempos manifestação visível da presença do Lar Familiaris, permanece ainda atestado no facto de continuarmos a chamar «fogo» a uma casa. Telmo Corujo dos Reis Professor da UMa

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Mitos clássicos, hermafroditas e andróginos: um desafio?

De acordo com a versão de Ovídio, Hermafrodito era filho, como o nome indica, dos deuses Hermes e Afrodite. Poucas categorias se terão mostrado, ao longo dos séculos, tão estranhamente e ao mesmo tempo estáveis como as de sexo e género. Ainda que a dicotomia homem/mulher, macho/fêmea seja considerada “natural”, por se basear em características biológicas, não deixou de com frequência se mostrar insuficiente. Alguns mitos clássicos problematizam esta diferenciação, apresentando uma reflexão acerca da forma como os traços biológicos associados à noção de sexo condicionam as expectativas culturais que configuram o conceito de género. Por esta razão, seres que reúnem elementos dos dois sexos afloram aqui e ali na mitologia, desafiando o que os Gregos consideravam ou “feminino” ou “masculino”. Seres hermafroditas como o próprio Hermafrodito ou como o andrógino do Banquete de Platão revelam os sinais de uma análise mais ou menos coerente da necessidade social do outro, do anseio pela “cara-metade” enquanto base fundamental da existência humana. De acordo com a versão de Ovídio, Hermafrodito era filho, como o nome indica, dos deuses Hermes e Afrodite. Era um jovem belo e garboso, que, nas suas viagens pelo mundo, encontrou um lago de águas cristalinas onde habitava uma ninfa, Sálmacis. Tomada de amores pelo jovem, a ninfa declara-se mas não obtém dele mais do que repugnância e desprezo. Afasta-se então, mas enquanto Hermafrodito, seduzido pela frescura do lago, se banha nas suas águas, Sálmacis atira-se ao jovem, abraça-o e pede aos deuses que nunca os separem. Por algum motivo insondável, os deuses anuíram e fizeram de dois corpos um só. E, acrescenta Ovídio, não se percebe se é homem ou mulher, porque não parece nem um nem o outro, mas ambos. Aristófanes, uma das personagens d’O Banquete de Platão explica a orientação sexual de cada indivíduo com o mito do andrógino. Num passado remoto, existiriam à face da terra três tipos de seres, cada um constituído por duas metades: um ser que tinha duas metades masculinas, outro tinha duas femininas e o terceiro tinha uma metade de cada género. Como, por se sentirem completos, se tornaram demasiado confiantes, decidiram atacar os deuses que, em resposta, os dividiram a todos ao meio. Assim nasceu a actual raça humana: cada um sente a falta da sua metade. Ora, se um indivíduo resulta da separação do ser andrógino, que tinha uma metade masculina (andro-) e uma feminina (gino-), procurará um parceiro do sexo oposto. Todavia, se resulta da separação dos outros dois, procurará um parceiro do mesmo sexo. Estes são apenas dois exemplos duma preocupação constante na história da humanidade: a de criar categorias para explicar, para “arrumar” o mundo. A possibilidade de existir “o verdadeiro hermafrodita”, um ser com os dois sexos capaz de gerar em si próprio, foi durante muito tempo uma ideia assustadora. Ao longo dos séculos, o hermafroditismo e a homossexualidade foram identificadas como patologias, por vezes temidas e associadas às maquinações de forças diabólicas; outras vezes foram consideradas prova do poder exuberante da natureza que não se rege pelas normas dos homens. E neste momento da história onde nos situamos? Cristina Santos Pinheiro Docente da UMa

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OS NOSSOS PARCEIROS