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ficção

Estórias do arco da velha

Hoje acordaste em mim. Não necessariamente mais que nos outros dias, mas hoje senti-te no meu nariz. É estranha essa característica humana de recordar coisas que deveriam ser passageiras: como o teu cheiro. Farejei-te no ar, como um cão faminto e caí em mim quando reparei que te procurava por todos os cantos da casa, uma casa que não conheceste. Como é possível o teu cheiro estar aqui? Pergunto-me se ainda pensas em mim; se relembras as nossas manhãs a arrastar as bilhas de leite e eu olhando-te por debaixo da saia, procurando um esconderijo longe do teu velho, onde me agarravas com paixão e encantamento. Às vezes, ainda me deito com a mesma sensação de antes, quando adormecia com a necessidade de querer acordar rápido, para poder ver-te, tocar-te, desmaiar-me para dentro dos teus olhos azeitona ou adormecer na maciez dos teus lábios. Ainda gostas de sorvete de melancia? O ritual era sagrado: rodeavas-me com os braços, beijavas-me nas orelhas, percorrendo o contorno da barba e levavas-me pela mão para o teu sítio secreto. E, por entre colheradas, lábios lambuzados, gargalhadas e suspiros, tu entregavas-te sempre com a mesma ânsia de querer ser minha. Mas, depois, veio essa mania de querer ser bem-sucedida e foste estudar, deixando-me sozinho, com o coração negro e uma saudade que me manchava a alma de bolor. Sempre me prometeste que seríamos a adição de dois corações. Mentiste-me e eu magoei-te. Quando deixarei de ver o teu sangue na ponta dos meus dedos? Valentina Silva Ferreira Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

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Estórias do arco da velha

Pai. Filho. Espírito Santo. Ámen. O pão foi dividido em quatro e entregue à mãe, ao pai, ao filho e à filha. Mastigou-se em silêncio, sombreado pelo zunido de moscas gordas e sebosas que se colavam às peles húmidas e carecidas de água. Os olhinhos pequenos das crianças saltavam de prato em prato, numa espécie de corrida contra o tempo: quem acabasse primeiro, poderia ficar com o pescoço que sobrara no prato de barro. O menino foi o primeiro: chupou o caldo com os beiços em forma de beijinho e jogou a colher para dentro da taça; a mão foi rápida – voou em direcção ao pescoço pouco carnudo e levou-o à boca. Uns dedos gastos pela terra sacudiram a orelha do pequeno que, dolorido, largou o osso e chorou. – Quem te disse que isso é para ti? A mãe encostou as mãozinhas ao peito e fungou baixinho. A menina baixou os olhos e continuou a comer. O pai colocou o maldito pescoço na borda do prato e sorveu o resto da sopa. Naquela casa comia-se pouco: mas trabalhava-se muito. E isso é contraditório. Muitas vezes, o único som que reinava na sala velha, aquecida por uma lareira antiga, eram os resmungos de estômagos esfomeados e fracos, seguidos por suspiros de quem tenta confortar o buraco vazio com um ar; um ar carregado de cheiros e vivências pesadas. O pai limpou o bigode, demoradamente, como que fazendo cerimónia. Os outros seis olhos concentraram-se nos movimentos do homem que pegou no pescoço e o encarou com gula. – Nesta casa, divide-se tudo. Não apenas no Natal mas todo o ano. E o pescoço foi partido em quatro porque ali podia faltar o luxo mas abundava a união. Os meninos chuparam com regalo os seus bocadinhos; a mãe sorriu e o pai viu nos olhos das suas crianças que, a cada dia, os ensinava a serem Homem e Mulher. Valentina Silva Ferreira Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

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Estórias do Arco da Velha

DESPEDIDA – Pensei que fosses para sempre minha. – Pensaste mal. – E é assim? Acabas como se fosse uma coisinha qualquer? – Há outras maneiras de acabar? – Há. Claro que há. – Como? O silêncio pesou entre os dois. Ela alisou o cabelo com as mãos e ele afagou o pescoço. Uma dor de cabeça remoía ambos. A noite acabara de cair e o parque encontrava-se deserto. – Já não gostas de mim? – Gosto. – E então? Não precisamos acabar só porque vais para outro lugar. Podemos tentar… – Nem tu nem eu gostamos de relações à distância. – Eu sei. Mas… nunca passei por isso. E agora que estou nessa situação, sinto que seria capaz de enfrentar anos de ausência se tivesse a certeza de que ficaríamos juntos. – Sabes bem que não é assim… Ela levantou-se do banco e encostou o corpo triste à pequena grade de ferros que separava o caminho do lago. Sentiu a respiração desconsolada dele e fechou os olhos. Desejava que nada daquilo pudesse acontecer. Mas aconteceu e a escolha estava feita. Uma lágrima abandonou o olho e deixou-se escorregar pela sua bochecha. Virou-se em direcção a ele e encarou-o. Também chorava, com as mãos a cobrirem o rosto e a garganta a engolir nós de amargura. Sentiu uma dor trucidante por vê-lo assim. Era capaz de encarar a sua própria infelicidade mas não suportava ver a pessoa que mais amava sofrer daquele jeito. Aproximou-se dele e ofereceu o seu abraço. Ele cedeu. Choraram juntos, ele no peito dela, ela no ombro dele. Não se olharam. Limitaram-se a amparar a queda do outro e a desabafar num choro calado, que só eles conheciam. O tempo passou, a lua colocou-se por cima das suas cabeças e brilhou. Eles secaram as lágrimas e enfrentaram-se. Os olhos dela reflectiam uma limpidez nua. E ele encontrava-se mais bonito que nunca. Sorriram sem, no entanto, esconder a dor da separação. – A minha mãe sempre disse que o que é nosso, a nós irá bater. – Espero que a tua mãe esteja certa. Passou a mão grande pelo rosto pequeno dela e sorriram novamente. Ela entreabriu os lábios e pediu, com as pestanas compridas e sedutoras que batiam como asas de uma bonita borboleta, um beijo. O último beijo. Ele não pensou duas vezes. Encostou o corpo ao dela, puxou-a pela mão e sentou-a no seu colo. Beijaram-se eternamente, absorvendo sabores e cheiros, guardando sensações e sentimentos, procurando o último tesouro escondido. Amaram-se sabendo que no instante a seguir chegaria a guerra. Aos prazeres juntaram-se as lágrimas. Aos suspiros juntaram-se as súplicas. Ao correr do vento juntou-se o bater dos corações. Deram as mãos e olharam no fundo da alma. Um olhar que lambeu feridas e remendou cicatrizes mas que não curou. – Sê feliz. – Tu também. – Tenho aqui duas moedas. Queres atirá-las comigo ao lago e pedir um desejo? – Pode ser. Ele colocou a moeda na mão dela e apertou a sua. Jogaram-nas juntos e lançaram os seus desejos ao ar. Não pediram para ficarem juntos. Pediram, somente, que o que fosse deles, a eles fosse bater. Valentina Silva Ferreira Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

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Estórias do arco da velha

– Papá. Quem és? Conheço de cor esse verde azeitona que preenche o poço dos teus olhos: são o espelho dos meus. Mas quem és? Quando foi que nos perdemos? Quando foi que desfizemos a malha da nossa camisola – que nos ficava tão bem, que nos apertava um ao outro, onde éramos pai, filha, amigo, amiga, cúmplices. Para onde foste? Vejo-te – ainda que pouco – mas não te sinto. E tu, papá, conheces-me? Sabes de que fibra sou feita, que sonhos acrescento a cada dia, que medos me assolam, que sorrisos trago? Não sabes. Um conhecido atento sabe mais sobre mim que tu. Limpo as lágrimas. – Papá. Para onde fomos? Guardo memórias tão boas por detrás de um nevoeiro que me atraiçoa. Tenho receio: de esquecer o que lembro; de não conseguir lembrar o que já foste, o que já fomos. Há quanto tempo não me tocas, não me cheiras, não olhas para dentro de mim? Dentro! Não a carne que eu sou: mas o espírito. Há quanto tempo não lambes as minhas feridas ou sacodes os meus ombros quando estou errada? Já me perdi nos anos. Escrevo hoje para ti. E choro. -Papá. Amas-me? Diz-me que sim mesmo que não o sintas. Prefiro viver na ilusão de um amor: congelado, escondido, perdido nas gavetas da minha infância. Sinto-me melhor agora. Queria que soubesses que eu sei que somos um retrato falso. E que, a maior parte das vezes, isso não me incomoda, mas hoje sinto-me menina – menina descalça na fazenda, menina nos baloiços, menina na escola, menina de tranças – e, quando estou assim, sinto a tua ausência. -Papá. Será que voltas? A mulher-menina releu a carta e dobrou-a em quatro, metendo-a no caderno das confissões. Pegou na bolsa e beijou a mãe com fúria: um obrigada depositado nas bochechas de quem a cheirava, de quem a conhecia de trás para a frente, de quem a acudia sempre, para sempre. – Bom fim-de-semana, querida. E a rapariga saiu: a casa do pai esperava-a, com as suas marione- tas e o seu teatro ensaiado. Valentina Silva Ferreira

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