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Quando os grandes eram pequenos

O cheiro dos Verões passados, das bonecas Barbie e Nenuco passam por mim sempre que olho para trás. Tantos anos passaram e dou por mim a abrir a pequena gaveta do coração que se chama saudade. Não posso dizer que tudo foi fácil, mas posso dizer que foi maravilhoso e educador.

Tudo começou quando me mudei de armas e bagagens da minha terra natal para um lugar onde todos pareciam se conhecer excepto eu. Madeira, o meu destino até hoje. Aos poucos com o meu “portunhol” ou “espanholês” fui conquistando o coração dos primos e amigos e adaptei-me, ganhando amizades que duram ainda.

Lembro-me vivamente das brincadeiras do meu grupinho de infância. Éramos 7 mas parecíamos 14. Além das 7 crianças haviam 10 adolescentes, mas como é óbvio nunca entrávamos nas brincadeiras dos “grandes”. Quando isso acontecia, voltávamos a chorar para o colo das mamãs, porque tínhamos levado com a bola na cara, ou com algum pontapé.

A casa da minha avó fazia muitas vezes parte do espaço elegido do dia pois havia uma enorme cerejeira em que todos adorávamos fingir que éramos macacos, ou pendurávamos cordas e fazíamos um baloiço improvisado. Na época das cerejas, esquecíamos completamente o baloiço e comíamos cerejas durante horas enquanto cuspíamos os caroços uns para os outros, chamando a isso de “a metralhadora dos caroços”.

Ainda na casa da minha avó, outra das brincadeiras era a cabra cega devido ao largo espaço que existia. Era um dos nossos jogos preferidos até ao dia que esfolei uma perna toda. Aí desistimos e deixou de ser da nossa predilecção.

Ainda me rio sempre que recordo um dos episódios mais perigosos e hilariantes da minha infância. Influenciei todos para festejarmos os Santos Populares à nossa maneira, e assim foi. Às escondidas dos nossos pais levámos montes de livros e cadernos para um mini descampado mesmo em frente à minha casa e ateámos-lhes fogo. Foi espectacular ver aquelas chamas todas, mas infelizmente a minha mãe sentiu o cheiro a queimado e veio ver o que se passava. Olhou para nós e para a nossa tamanha asneira e começou a gritar. Olhámos uns para os outros e começámos a chorar e, só depois de nos acalmarmos, é que percebemos o que se tinha passado. Tínhamos ateado não só a nossa fogueira de S. João, como também o poste de iluminação pública e toda a vizinhança iria ficar sem electricidade em casa.

Uma das minhas muitas recordações é aqueles frascos antigos do sabão Fairy. Quando não estávamos na casa da minha avó, estávamos na casa da minha tia. Surripiávamos o sabão da cozinha da minha tia, estendíamos a mangueira e os azulejos do pátio faziam o resto. Era um escorrega mesmo estupendo para crianças de 6 ou 7 anos. Depois de nos fartarmos vestíamos a roupa novamente e, como já tínhamos o sabão na nossa posse, fazíamos bolas de sabão com restos de tubo para fios eléctricos. Quando o sabão estava no fim éramos descobertos e aí tínhamos grandes sermões à nossa espera.

Recordo-me da minha primeira mentira. Tinha 5 anos e achava que andar na escola fazia de mim adulta. Cheguei a casa toda convencida da minha mentira, numa sexta-feira e disse à minha irmã mais velha que a professora nos tinha mandado como trabalho de casa nada mais nada menos do que aprender a ler. Não sabia eu no que me estava a meter. No princípio não havia nada mais adulto do que aquilo. Adorava ler os ditongos. Após a primeira hora comecei a arrepender-me e decidi contar a verdade. Grande problema. Ela não acreditou em mim e se acreditou fingiu que não, obrigando-me a aprender. Lembro-me vivamente de que a primeira palavra que li foi igreja. E soube tão bem depois daquele sacrifício todo.

É possível uma criança aprender a ler num só fim-de-semana? Sim, é. Serviu-me de castigo e de lição. Nunca mais lhe menti e deixei de tentar ser adulta, porque lá no fundo adorava ser criança (e se pudesse ainda o era).

Naquela altura, Playstation, Nintendo, iPod eram nomes que nem passavam pela nossa cabeça e agradeço por isso. Lembro-me de só ter uma Gameboy e nem era propriamente criança quando a recebi, pois já tinha 12 ou 13 anos. Para mim a nostalgia do cheirinho a cadernos e livros novos, da borracha bem branquinha e do lápis por afiar eram bem mais importantes do que o CD acabado de sair ou o novo modelo de telemóvel.

À procura da fotografia para a Revista JA, encontrei fotografias com sorrisos desdentados ou com calças que rasgávamos propositadamente para podermos ter aqueles remendos que se colavam. Vejo que só somos crianças uma vez, por mais vezes que recordemos os tempos passados. A infância para mim foi única e infelizmente nunca mais volta. Era bom se o tempo parasse, pelo menos até que conseguisse jogar à cabra cega sem escoriações, até que o Fairy fizesse mais um escorrega, até que as minhas bonecas se fartassem de mim.

Se podia viver sem a minha infância? Poder até podia, mas não seria a mesma coisa.

Nathaly Oliveira
Presidente da Comissão de Praxe 2011-2012

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