As palavras-chave permitem que o leitor tenha acesso aos artigos que foram classificados com esse vocábulo enquanto etiqueta. Dessa forma, o repositório digital de notícias da ET AL. é filtrado para que o leitor consulte o grupo de artigos que corresponde à palavra-chave que selecionou. Em alternativa, pode optar pela procura de termos na barra de pesquisa.

Etiqueta Selecionada

Cristina Santos Pinheiro

Pragas e pestilências ou o desespero do ser humano perante um inimigo invisível

A ideia de que vivemos tempos inéditos, de que nunca nada disto antes se viu, aliada às imagens de ruas desertas, de cadáveres e caixões amontoados em igrejas ou armazéns, de unidades de cuidados intensivos em que nada mais se ouve que não o estertor da morte e os sons impiedosos das máquinas, tem-nos sido trazida pelos meios de comunicação social nestes que foram meses de apreensão e inquietude. É, porém, um grave erro histórico pensarmos que a ameaça de um inimigo invisível, mas omnipresente, tem algo de novo. Ao longo da sua história a humanidade enfrentou surtos epidémicos de causas, origens e características diversas, mas que tiveram em comum precisamente esta sensação de impotência e de incapacidade que tem o condão de nos reduzir, enquanto seres humanos, à nossa reconhecida e por vezes bem lembrada impotência. Para cumprirmos o objectivo desta secção – Memorandum, isto é, “o que deve ser lembrado” – queremos lembrar neste número alguns dos tópicos mais frequentes nos textos gregos e romanos sobre surtos de doenças contagiosas. O que propomos é um desafio do tipo “descubra as diferenças” entre o que nos legou a cultura clássica e o que enfrentamos na actualidade. Ao leitor deixamos toda a liberdade para estabelecer as ligações que e como quiser. Baseamo-nos em textos de épocas diversas, desde Homero a Galeno, e de géneros literários distintos relacionados com a épica, a tragédia, a historiografia, a medicina… Um dos elementos mais significativos nestes textos e, em especial, naquele que constituiu, pelos séculos fora, uma espécie de modelo para a descrição de pestilências – referimo-nos à obra de Tucídides, História da Guerra do Peloponeso, que descreve a peste de Atenas de 430-426 a. C. – é o relato vivo e complexo das consequências de ordem social e moral deste tipo de enfermidades. A inexistência de distinções de ordem social, baseadas na idade, no sexo, na riqueza, no estatuto, é reconhecida como uma inversão das normas. O contágio que se espalha sem fazer distinção entre o jovem e o idoso, a mulher e o homem, o pobre e o rico, o escravo e o cidadão livre representa a destruição da ordem social numa comunidade que tem os seus fundamentos precisamente na diferença. Nas cidades que se apresentam aos olhos do leitor vêem-se moribundos e cadáveres, tanto espalhados e insepultos pelas ruas, como no interior dos edifícios públicos e privados. O abandono dos rituais fúnebres – que aumenta, como os autores reconhecem, o perigo de contágio – é também um sinal da decadência moral que se identifica em sociedades em que o desespero e a certeza de uma morte próxima tornam irrelevante o cumprimento da lei. A estrutura das sociedades antigas, fortemente enraizada nas relações familiares, é arruinada pelo medo do contágio. Os doentes vêem-se abandonados e os poucos que deles se aproximam são, muitas vezes, cremados na mesma pira, diz-nos Tácito. Por fim, um esclarecimento. Ainda que se diga que os antigos não tinham conhecimento correcto das formas de contágio, é preciso ter em consideração que: 1) sabiam que algumas doenças afectavam apenas grupos ou comunidades; 2) que estas doenças passavam de um indivíduo para outro. A explicação mais frequente para este tipo de doenças baseava-se na existência de miasmata no ar, que teriam origem em vapores insalubres, como os exalados pelos cadáveres num campo de batalha ou pelas águas estagnadas e fétidas. Esta explicação manteve-se durante séculos, por vezes aliada à vontade e à ira divinas, pelo menos até que, na sua obra De contagione et contagiosis morbis, publicada em 1546, Girolamo Fracastoro apresentou a teoria de que as doenças epidémicas são causadas por partículas minúsculas que são transmitidas por um indivíduo doente para um indivíduo em contacto com ele. Nihil novi, nada de novo, portanto, e, também como no passado, aprenderemos e avançaremos, recordados mais do que nunca de omnia mors aequat, a morte nivela tudo. Cristina Santos Pinheiro Professora da UMa

LER MAIS...

“Gynaikeia”, coisas de mulheres…

Gynaikeia é uma palavra grega que, como substantivo plural, constitui o título de alguns tratados médicos antigos dedicados às doenças femininas. Significa, à letra, “o que diz respeito às mulheres” e pode designar os órgãos sexuais femininos, as doenças específicas das mulheres ou os remédios para essas doenças, ou a menstruação. Na história da medicina, estes tratados foram pouco estudados, quer por se considerar que abordavam um tema com pouco interesse, que normalmente se relegava para o âmbito feminino, quer porque as matérias que exploravam eram consideradas pouco dignas de atenção. A saúde reprodutiva das mulheres foi, no entanto, temática presente na medicina ocidental desde os seus primórdios. Do conjunto de textos médicos atribuídos a Hipócrates, fazem parte três livros a que se atribui o título de Peri gynaikeion, Sobre as doenças das mulheres, e que devem ter sido formados por um processo de compilação provavelmente terminado em finais do século V ou início do século IV a. C. Alguns séculos mais tarde, Sorano, médico grego que praticou medicina em Roma no século I-II d. C., compôs um tratado de ginecologia com o mesmo título. Este tratado foi traduzido e adaptado por vários autores posteriores e o seu conhecimento manteve-se durante séculos na Europa, especialmente graças à versão de um autor desconhecido, de nome Mústio ou Múscio, que, preservada em múltiplos manuscritos, é integrada nos compêndios de ginecologia impressos no Renascimento. No início do século XVI, a redescoberta dos textos hipocráticos sobre ginecologia está na base de um novo interesse por esta área da medicina. O facto de o “pai da medicina” poder ser também considerado “o pai da medicina das mulheres” legitima que o médico de instrução universitária se dedique ao que até então tinha sido maioritariamente um campo de intervenção feminina, dominado por parteiras sem preparação teórica. Nomes como o dos italianos Ludovico Bonaccioli e Girolamo Mercuriale (mais conhecido pelo seu tratado De re gymnastica), o espanhol Luis de Mercado, os franceses Nicholas de la Roche e François Rousset (autor do primeiro tratado médico sobre cesariana) ou o nosso tão pouco reconhecido Rodrigo de Castro Lusitano tornaram-se referências na génese da ginecologia como uma especialidade médica, dando continuidade à concepção hipocrática de que as mulheres carecem de um tratamento médico diferenciado. Como se lê no tratado hipocrático (1.62), as doenças das mulheres são difíceis de perceber porque “as mulheres têm doenças próprias e por vezes nem elas próprias sabem o que lhes está a acontecer até experimentarem as doenças que são causadas pela menstruação e irem envelhecendo.” Mas o papel dos médicos é igualmente importante, já que, “por não se informarem com exactidão do motivo de uma doença concreta” a tratam “como uma doença de homens”. Com base nesta diferenciação entre dois corpos que têm naturezas e condições diferentes, construiu-se um conjunto de textos médicos que caiu no esquecimento e que, na prateleira dos reservados de uma biblioteca ou num documento pdf do Google books, aguardam a devida atenção. Cristina Santos Pinheiro Universidade da Madeira/Centro de Estudos Clássicos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

LER MAIS...

“A César o que é de César…”

O título deste texto é, como se sabe, parte da resposta proferida por Jesus Cristo quando questionado, de forma provocatória, sobre a legitimidade de pagar tributo a Roma. Terá dito mostrando a efígie do imperador numa moeda romana: “Dai, pois, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.” O César representado na moeda era provavelmente Tibério, que por adopção herdara o cognome Caesar do seu padrasto, ele próprio também César por adopção. Na origem, Caesar é cognome da família de Gaio Júlio César, célebre general e estadista romano, conhecido entre os mais novos principalmente graças às aventuras de Astérix e Obélix, e provavelmente uma das personagens mais conhecidas da história romana. Conhecida e citada! Todos nós já alguma vez usámos uma das suas célebres frases: “Cheguei, vi e venci!” (em Latim, veni, vidi, vici) ou “Os dados foram lançados” (Alea iacta est), a primeira usada para demonstrar a extrema facilidade de uma conquista, a segunda usada no contexto de uma situação que é irreversível. Outras expressões que a César devemos serão menos conhecidas mas o seu uso é frequente. Lembremos a tantas vezes mencionada mulher de César, a quem não basta SER séria, é preciso PARECER séria. Poucos, ainda assim, saberão que a expressão – que valoriza a imagem e a aparência, acima da essência – tem origem num episódio da vida conjugal de César. Numa festividade religiosa reservada às mulheres, em honra da Bona Dea, uma deusa associada à fertilidade, e celebrada a 3 de Dezembro, foi detectada a presença de um homem, Clódio, na casa de César, o que levantou suspeitas acerca do comportamento da então esposa de César, Pompeia. Foi Aurélia, a mãe de César e sogra de Pompeia, quem se apercebeu do intruso (por esta razão, sabemos que César não pode ter nascido de cesariana, já que a mãe não teria sobrevivido, na altura, a uma intervenção deste tipo)… Espalhado o boato, que foi aproveitado pelos inimigos políticos quer de César quer de Clódio, meses depois e já divorciado de Pompeia, ao perguntarem a César em tribunal por que razão se divorciara da esposa, terá dito, de acordo com Plutarco: “porque considerei que a minha esposa não deve suscitar suspeitas”. Quer se tivesse tratado de uma estratégia política, quer tivesse sido uma justificação conveniente para o divórcio, o que é certo é que para a esposa de César nunca mais foi suficiente ser moralmente correcta. A César devemos também a ideia de que as pessoas acreditam naquilo que querem, tenham ou não razões para o fazerem. A ideia aparece numa das suas obras, A guerra das Gálias (homines id quod volunt credunt). Trata-se, na verdade, de um comentário a uma estratégia militar: César convenceu um gaulês apoiante dos romanos a fingir-se desertor e a transmitir aos gauleses a ideia de que os romanos enfrentavam grandes dificuldades. Entusiasmados com estas falsas notícias, os gauleses, sem questionarem a veracidade das informações, atacaram os romanos que, obviamente, os esperavam e os venceram. Ficou a expressão, como um aviso contra as “inverdades” e contra os “factos alternativos”… Cristina Santos Pinheiro Professora da UMa e investigadora do UL-Centro de Estudos Clássicos

LER MAIS...

Mitos clássicos, hermafroditas e andróginos: um desafio?

De acordo com a versão de Ovídio, Hermafrodito era filho, como o nome indica, dos deuses Hermes e Afrodite. Poucas categorias se terão mostrado, ao longo dos séculos, tão estranhamente e ao mesmo tempo estáveis como as de sexo e género. Ainda que a dicotomia homem/mulher, macho/fêmea seja considerada “natural”, por se basear em características biológicas, não deixou de com frequência se mostrar insuficiente. Alguns mitos clássicos problematizam esta diferenciação, apresentando uma reflexão acerca da forma como os traços biológicos associados à noção de sexo condicionam as expectativas culturais que configuram o conceito de género. Por esta razão, seres que reúnem elementos dos dois sexos afloram aqui e ali na mitologia, desafiando o que os Gregos consideravam ou “feminino” ou “masculino”. Seres hermafroditas como o próprio Hermafrodito ou como o andrógino do Banquete de Platão revelam os sinais de uma análise mais ou menos coerente da necessidade social do outro, do anseio pela “cara-metade” enquanto base fundamental da existência humana. De acordo com a versão de Ovídio, Hermafrodito era filho, como o nome indica, dos deuses Hermes e Afrodite. Era um jovem belo e garboso, que, nas suas viagens pelo mundo, encontrou um lago de águas cristalinas onde habitava uma ninfa, Sálmacis. Tomada de amores pelo jovem, a ninfa declara-se mas não obtém dele mais do que repugnância e desprezo. Afasta-se então, mas enquanto Hermafrodito, seduzido pela frescura do lago, se banha nas suas águas, Sálmacis atira-se ao jovem, abraça-o e pede aos deuses que nunca os separem. Por algum motivo insondável, os deuses anuíram e fizeram de dois corpos um só. E, acrescenta Ovídio, não se percebe se é homem ou mulher, porque não parece nem um nem o outro, mas ambos. Aristófanes, uma das personagens d’O Banquete de Platão explica a orientação sexual de cada indivíduo com o mito do andrógino. Num passado remoto, existiriam à face da terra três tipos de seres, cada um constituído por duas metades: um ser que tinha duas metades masculinas, outro tinha duas femininas e o terceiro tinha uma metade de cada género. Como, por se sentirem completos, se tornaram demasiado confiantes, decidiram atacar os deuses que, em resposta, os dividiram a todos ao meio. Assim nasceu a actual raça humana: cada um sente a falta da sua metade. Ora, se um indivíduo resulta da separação do ser andrógino, que tinha uma metade masculina (andro-) e uma feminina (gino-), procurará um parceiro do sexo oposto. Todavia, se resulta da separação dos outros dois, procurará um parceiro do mesmo sexo. Estes são apenas dois exemplos duma preocupação constante na história da humanidade: a de criar categorias para explicar, para “arrumar” o mundo. A possibilidade de existir “o verdadeiro hermafrodita”, um ser com os dois sexos capaz de gerar em si próprio, foi durante muito tempo uma ideia assustadora. Ao longo dos séculos, o hermafroditismo e a homossexualidade foram identificadas como patologias, por vezes temidas e associadas às maquinações de forças diabólicas; outras vezes foram consideradas prova do poder exuberante da natureza que não se rege pelas normas dos homens. E neste momento da história onde nos situamos? Cristina Santos Pinheiro Docente da UMa

LER MAIS...

Nós et al.

Et al. é abreviatura da expressão latina et alii (“e outros”) e utiliza-se nas referências bibliográficas, para identificar uma obra com mais de seis co-autores. É, assim, uma forma de abreviar o que, de outro modo, se tornaria demasiado extenso. A referência de uma obra da autoria de J. Santos, T. Rodrigues, F. Silva, D. Peres, R. Faria, L. Pimentel e H. Freitas, publicada em 2004, será, de acordo com as normas da American Psychological Association, que são as normas bibliográficas mais utilizadas nas Ciências Sociais e Humanas, identificada como Silva et al. (2004). Et al. é, assim, a forma de referir os últimos autores, que por esta razão não são nomeados. É abreviatura dos que não são identificados e que são, assim, votados ao anonimato. Como em tudo na vida, há quem se chegue à frente e dê a cara e há os outros, os que preferem manter-se na sombra, mas que são tão importantes como os primeiros. Historicamente votaram-se ao anonimato as chamadas classes mudas da sociedade: as mulheres, as crianças, os idosos, as minorias étnicas. Também a história se faz principalmente com os que se mostraram, com os que deixaram registo do seu nome e das suas obras, mas a civilização cresceu tanto com os que vieram para a luz como com os que permaneceram nas trevas. Os alii, os outros, são com frequência aqueles que não se nomeiam, que não se identificam, que não deixam memória da sua vida. Os outros são aqueles que não aparecem, que se remetem a um silêncio social e cultural que oblitera a sua identidade. Alii são aqueles de quem se faz tabula rasa. Tabula rasa significa “tabuinha raspada”. Os Romanos escreviam em tabuinhas de madeira cobertas de cera, que se raspavam a fim de se escrever novamente por cima. Fazer tabula rasa de algo significa esquecer o que aconteceu para começar de novo. Implica obliterar para construir algo diferente. E isto não é um assunto de lana caprina, isto é, não se trata de matéria de pouco valor, como o da lã das cabras. Quando obliteramos a identidade do outro, retiramos-lhe a oportunidade de ser reconhecido, de receber o crédito que lhe é devido pelo seu labor, pelo seu esforço, pelo seu trabalho. E aí reside o busílis da questão. “Busílis” é uma palavra com uma história engraçada. Um estudante de Latim com algumas limitações, ao ler num manuscrito sem separação de palavras a expressão latina in diebus illis (no manuscrito apareceria em capitais: INDIEBUSILLIS), que significa “naqueles dias”, separou INDIE que pensou significar “os índios” de BUSILLIS, que não conseguiu perceber, porque obviamente não se trata de uma palavra latina… O busílis de uma questão é, portanto, aquilo que não conseguimos decifrar, compreender ou solucionar. E os outros constituem para nós com muita frequência um desafio, uma dificuldade, um enigma. Tantas vezes consideramos o outro persona non grata, tantas vezes o julgamos com base em preconceitos e agendas escondidas… Agendas no seu significado etimológico, ou seja, “as coisas que temos de fazer” e que normalmente registamos num caderno ou num aparelho electrónico para não esquecermos. Aceitar o outro implica respeito e reconhecimento, implica a tolerância de qualquer qui pro quo, expressão latina que significa “um pelo outro”, isto é, não entender correctamente uma palavra ou um acto. Mas errare humanum est sed perseverare diabolicum (“errar é humano, mas perseverar [no erro] é diabólico”) ou, citando Cícero: cuiusvis est errare: nullius nisi insipientis errore perseverare (“errar é próprio de qualquer um, de ninguém senão do ignorante perseverar no erro”). Com efeito, nada é mais notável no ser humano do que a sua capacidade de errar e de aprender com os seus erros, de cair e de se levantar. No que diz respeito aos alii, é em relação a eles que o ser humano mais erra: porque é mais cómodo projectar no outro o que é estranho, o que é incompreensível ou inaceitável. Como nome de revista académica et al. será certamente um indicador do que a academia tem de mais precioso: a busca do conhecimento, da compreensão, da mudança, busca que resulta inevitavelmente em inclusão e tolerância. O que é a universidade senão um reflexo do mundo? Uma projecção de nós et alii? De nós e dos outros? Cristina Santos Pinheiro Professora da UMa

LER MAIS...
OS NOSSOS PARCEIROS